A G.R.E.S Estação Primeira de Mangueira foi a campeã do carnaval carioca do ano de 2019. Com o samba enredo “história para ninar gente grande”, ela deu uma importante lição histórica. Evocando Karl Marx, “conhecemos somente uma ciência: a ciência da história”. Tudo é história. A que contaram, para nós, foi escrita pelos dominadores. A “classe que domina no plano material, domina no plano espiritual”. “As ideias dominantes são as das classes dominantes”. Ideologias ocultadoras da realidade social nas páginas dos livros escolares. Mais uma vez recorro à referência teórico/metodológica marxista para refletir sobre um acontecimento histórico. Um marco carnavalesco que reforça a dimensão política de uma festa cultural. Os brincantes da verde e rosa deram uma aula de beleza, criatividade e cidadania, na Marquês de Sapucaí. Cidadãos fantasiados para puxar um canto libertador. Batucada descolonizadora. Deivid Domênico, Tomaz Miranda, Mama, Márcio Bola, Ronie Oliveira e Danilo Firmino são os autores do crítico e educativo samba mangueirense. E por falar em educação, evoco também Paulo Freire, o pedagogo da libertação. A sua pedagogia do oprimido lê a história a partir da ótica dos que não têm voz nem vez, ou seja, os excluídos, os apartados, os deserdados.
Da comissão de frente às fantasias e alegorias, a Mangueira ganhou muitas notas dez, em todos os quesitos julgados. Um desfile emocionante que empolgou o público, identificado com a sua questionadora proposta carnavalesca. Parabenizo o talentoso Leandro Vieira, o jovem carnavalesco responsável pela vitória da escola do Cartola, Maria Bethânia, Nelson Cavaquinho, Chico Buarque, Beth Carvalho, Jamelão, Leci Brandão, Beth Carvalho, Alcione e tantas outras ilustríssimas figuras humanas. A Mangueira de 2019 sambou sintonizada com os indignados de um país que perdeu a delicadeza. Os sambistas mangueirenses foram os porta-vozes de quem clama por justiça e paz. Deram vivas à diversidade e exaltaram gente que fez e faz a história na luta contra as injustiças e desigualdades sociais. Gritos que foram silenciados pelos poderes da civilização imposta com a cruz e a espada. A história da riqueza do homem narrada pela pesada carga da jornada de trabalho dos operários construtores. Ao contrário do que dizem, isto não é doutrinação e sim desmascaramento.
O campeonato da Mangueira representa o clamor dos descontentes com a desgovernada brazuca do vale-tudo. Da passarela do sambódromo carioca, os puxadores do samba mangueirense provocaram uma empática reação ao recado da escola. Harmonia escolar com os historiadores que contam a história a partir da visão dos explorados e dominados. As alas da Mangueira provocaram para uma reescrita das páginas dos textos de história do Brasil. Registros a serem escritos pela ótica do favelado, do habitante da criminalizada habitação periférica. Gente do morro fazendo a hora e estimulando a conjugação do verbo resistir. A comunidade mangueirense disparou o seu ritmo de resistência. Portando o verdor e o rosado da sua bandeira, a Mangueira evoluiu na ginga dos seus bambas e passistas. O carnaval passou e as vidas brasileiras seguem na descuidada pátria. Amada? “Quem ama, cuida”, virou dito popular. Fomos ninados pela versão histórica sambada da Mangueira. Chegou a hora de viralizar o jeito mangueirense de contar os acontecimentos. Armamento verbal, artístico e incômodo a serviço de uma aquarela brasileira pintada por mãos convictas e responsáveis. A Mangueira venceu na rua. Sigamos a sua lição de como é feita a história. Na sequência, ao som de uma potente bateria, leio o conteúdo musicado da aula carnavalizada. Barulhinho bom contra a opressão e a injustiça nossa de cada dia:
BRASIL, MEU NEGO
DEIXA EU TE CONTAR
A HISTÓRIA QUE A HISTÓRIA NÃO CONTA
O AVESSO DO MESMO LUGAR
NA LUTA É QUE A GENTE SE ENCONTRA
BRASIL, MEU DENGO
A MANGUEIRA CHEGOU
COM VERSOS QUE O LIVRO APAGOU
DESDE 1500
TEM MAIS INVASÃO DO QUE DESCOBRIMENTO
TEM SANGUE RETINTO, PISADO
ATRÁS DO HERÓI EMOLDURADO
MULHERES, TAMOIOS, MULATOS
EU QUERO O PAÍS QUE NÃO TÁ NO RETRATO
BRASIL, O TEU NOME É DANDARA
E A TUA CARA É DE CARIRI
NÃO VEIO DO CÉU
NEM DAS MÃOS DE ISABEL A LIBERDADE
É UM DRAGÃO NO MAR DE ARACATI
SALVE OS CABOCLOS DE JULHO
QUEM FOI DE AÇO NOS ANOS DE CHUMBO
BRASIL, CHEGOU A VEZ
DE OUVIR AS MARIAS, MAHINS, MARIELLES E MALÊS
MANGUEIRA, TIRA A POEIRA DOS PORÕES
Ô, ABRE ALAS
PROS TEUS HERÓIS DE BARRACÕES
DOS BRASIS QUE SE FAZ UM PAÍS DE LECIS, JAMELÕES
(SÃO VERDE E ROSA AS MULTIDÕES)