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PPGS020 - SEXUALIDADE, IDENTIDADES E SUBJETIVIDADES - Turma: 01 (2019.1)

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  • BATISTAS TELÂNICOS CONTRA O ÓPIO RELIGIOSO
  • 25/04/2019 23:23
  • Texto:

    Diferente da teatral versão de Oscar Wilde para o drama evangélico, a Salomé do filme de William Dieterle (EUA/1953) aparece com uma outra roupagem. Após ter ouvido o conteúdo da evangelização de João Batista, ela inicia um processo de conversão ao cristianismo nascente. Na dimensão afetiva, Salomé desenvolve um relacionamento com o comandante romano Claudio que também está, em segredo, envolvido com as concepções religiosas joaninas. O casal tentará libertar João Batista da prisão em que foi posto por ordem de Herodes. Um dos motivos de ter levado Salomé a dançar para o rei foi a sua intenção de pedir a soltura do profeta encarcerado. A sua mãe, à revelia da filha, é a responsável pelo pedido da cabeça de João. Herodíades, na sua sede de permanecer no trono e prepará-lo posteriormente para Salomé, mantém uma relação utilitária com a sua bela cria. Usa os dotes físicos da filha, desconcertantes para Herodes, em proveito dos seus objetivos pessoais. Eliminar João Batista do seu caminho é um dos intentos de uma Herodíades manipuladora e dissimulada. Sua relação conjugal com Herodes é conflituosa e de fachada.

    As narrativas telânicas nas quais Salomé é a estrela, exemplificam a dimensão política presente no campo religioso. Em diversos conflitos históricos, um verniz de aparência religiosa muitas vezes é posto para encobrir as razões mais profundas das tensões que dividem os grupos sociais. Sem reducionismos sociológicos, negadores da especificidade da esfera religiosa, em sua relativa autonomia em relação às outras esferas da realidade, as motivações religiosas agem na história em paralelo com as de outras dimensões. Os sujeitos religiosos vivem as suas crenças em contextos históricos atravessados por diferentes interesses econômicos e políticos . Salomé vive os bastidores das intrigas palacianas. Disputas partidárias e religiosas dinamizam as conflituosas relações conjunturais. Na tradição dramatúrgica do teatro shakesperiano, as imagens em movimento desvelam atores representando uma multifacetada humanidade. O nobre e o ordinário dentro de um mesmo ser. Atormentado em seu vacilante trono, Herodes reina sob o império do medo e da insegurança. Do que somos capazes para mantermos os nossos privilégios e posições de mando? Os dramaturgos, nas suas sapienciais incursões pela aventura histórica humana, dão aulas sobre os paradoxos constituintes dos nossos seres.

    Salomés. Nome próprio, escrito no plural, para evocar as versões sobre a personagem de origem bíblica. A fonte fílmica pesquisada mostra a atriz Rita Hayworth dando vida à mulher que, banida de Roma, foi rotulada de “bárbara”. O império romano alimentava as estruturas opressivas de um mundo desigual, injusto e mantido pelo trabalho escravo. Imperialismo concentrador de renda e excludente. Salomé, de beleza estonteante, dispunha de uma fonte física de poder com a qual encantava os homens que atravessavam o seu caminho. O rei Herodes mantinha um condenável relacionamento afetivo com Herodíades e desejava conquistar a sua fascinante enteada. Sob julgamento moral e legal por estar cometendo adultério, a materna figura alimenta um raivoso sentimento por João Batista. Na rua, ele denuncia a ilegalidade marital dos entronados. Para Herodes, João era o Messias. Eliminá-lo poderia trazer maldições para o seu reinado. As reações populares a um atentado contra o Batista poderiam desencadear consequências desestabilizadoras. No seu discurso profético, João recusava falar somente de religião. A sua pregação denunciava a dominação romana e incomodava os poderosos do seu tempo. Herodes, assombrado com as ameaças da missão joanina, mantinha uma escorregadia posição relacionada ao carismático líder religioso. Sob o impacto da dança de Salomé, sucumbe ao pedido feito por Herodíades: a cabeça de João Batista. Oportunista, ela vinga-se da incômoda existência profética. Salomé fica chocada com a atitude da sua mãe e explicita o objetivo de não querer mais olhar para a sua cara. Por motivações afetivas, ela queria a liberdade joanina. Em leitura romantizada, a Salomé da história criada por Harry Kleiner e Jesse Lasky Jr. revela uma potência literária feminina a entrar na lista das mulheres protagonistas das letras. A fonte bíblica oferece para os leitores a oportunidade de ler os seus textos para além de uma leitura com propósitos evangelizadores. A Bíblia lida pelas lentes do interessado em registros literários. Com ou sem fé religiosa, é um livro de destaque na biblioteca histórica universal.

    João batistas fazem história nas telas. Rostos diversos para um pregador de uma religião encarnada, pé no chão. Em “Jesus de Nazaré”, filme de Franco Zeffirelli, com um discurso legalista, em nome da pureza e do arrependimento, João Batista encara os alvos da sua pregação condenatória. Ancorado na legislação mosaica, em público, solta o verbo, cara a cara, diante dos “criminosos” do poder: “O povo da Galileia viu injustiça quando era governado por Herodes, um homem de sangue! Agora seu filho, Herodes Antipas, o novo príncipe da Galileia, excede os crimes de seu pai! Segue suas cobiças e quebra a fé com Deus! Desafia a Lei de Moisés fazendo um casamento profano com a mulher do seu irmão. Se permitirmos isso, todos sofrerão por seus pecados”.

    “Herodes! As tábuas da Lei são claras. Você pode se casar com a mulher de seu irmão quando ele morrer, mas não enquanto estiver vivo! Esta mulher, Herodíades, é mulher de seu irmão Felipe e Felipe está vivo! É tetrarca em Iturea. Está escrito: “Eu tenho visto adultérios e abominações. A maldição esteja com eles”. Não quer se purificar? Mande de volta esta mulher para seu irmão. Arrependa-se! ...Não temo seu poder na terra, Herodes Antipas! Se eu não lhe avisar, você morrerá em pecado e o Senhor me pedirá para ser responsável por sua vida”.

    O João Batista de “O MESSIAS de Rossellini” representa o ser religioso que volta os olhos para o trono celeste sem perder de vista o compromisso com as questões terrenas. Pão e poesia nos horizontes de um homem precursor do posicionamento cristão face a um mundo governado pelos conflitos de interesses entre os homens. Indignado e compassivo, o Batista, no rio batismal, prega atento a questões sociais: “Bando de víboras! Quem lhes ensinou a fugir da ira que está para chegar? Chegou a hora de se arrependerem! E não achem que podem dizer que vocês têm o pai Abraão porque Deus pode fazer surgir filhos a Abraão mesmo dessas pedras! O machado já está nas raízes das árvores. Toda planta que não dá bons frutos é cortada e jogada ao fogo! ...Quem tem duas túnicas, divida com quem não tem. Quem tem comida, faça o mesmo. ...Vocês, publicanos que cobram os impostos não exigirão nada além daquilo que for justo. ...Não molestem ninguém, não denunciem falsamente. E fiquem satisfeitos com o pagamento”.

    O Batista rosselliniano não se intimida diante das autoridades e não baixa a sua cabeça na frente de Herodes. Na prisão, as suas atrevidas falas não se acanham na presença do opressor. Servidão voluntária não se coaduna com a sua ética convicta e responsável: “Sim, você é poderoso. Exerce o poder, mas não por isso é livre. Entre nós dois, é você quem é o escravo. ...E só um maluco pode se dizer livre tendo uma coroa na cabeça. ...Mas eu sim. Porque eu sou livre. Reflita um pouco. O que pode fazer para me castigar? Matar-me? Eu não tenho medo porque me aguarda o Reino dos Céus. Manter-me prisioneiro? O que importa estar acorrentado se o meu espírito é livre? Não tetrarca, eu sou livre. Você não. Você tem a coroa e obedece às ordens que lhe dão. ...Não, talvez o homem sob a coroa. De fato, nós não falamos bastante. ...Não, nós falamos toda vez que eu quiser. Se eu não quiser responder, não responderia. ...Eu já disse. Porque você também é um homem. E eu respondo ao homem. De homem para homem. Porque os homens são irmãos, todos iguais. Entende? Não há qualquer diferença”.

    João Batista recebeu várias leituras fílmicas. Entre elas, destaco a particular leitura feita por Pier Paolo Pasolini. Surpreende cineasta que, no seu trânsito entre as dimensões profana e sagrada da existência humana, leu a fonte bíblica e concebeu o seu discurso imagético sobre os controvertidos personagens evangélicos. Em “O Evangelho Segundo São Mateus”, com bachiana trilha, Pasolini imprime as suas cores a um joanino profeta. Em tom inflamado, o Batista pasoliniano emite um cortante enunciado verbal: “Fazei penitência, pois está próximo o Reino dos Céus. Este é aquele de quem falou o profeta Isaías, quando disse: ‘Uma voz clama no deserto. Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas’. Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da cólera vindoura? Não digais dentro de vós: Nós temos a Abraão por pai! Pois eu vos digo: Deus é poderoso para suscitar destas pedras filhos a Abraão. O machado já está posto à raiz das árvores. Toda árvore que não produzir bons frutos será cortada e lançada ao fogo”.

    E mais Joãos ganham imagens em movimento: Em “A Maior História de Todos os Tempos”, dirigido por George Stevens, o ator Charlton Heston deu vida a um João Batista tachado de arruaceiro, impostor, louco e agitador. Pregando o arrependimento, não se intimida com a insolência dos que se veem como donos do mundo. A arrogância dos prepotentes, quando são enfrentados, reage com uma conhecida pergunta: “Sabes com quem falas?” Herodes reproduz o citado questionamento, direcionado ao Batista que, no seu desafinar ao coro dos contentes, responde a um dono do poder: “Ouvi falar muitas coisas de ti, Herodes. Todas ruins. Não tenho rei exceto o Senhor Deus. ...O Cristo veio. O Cristo veio. ...Serás julgado com outros pecadores. ...Pois tuas espadas não farão nada contra ele”. Em contextos de alienação e conservadorismo religioso, o cinema projeta a memória de um sujeito religioso inconformado e resistente às potências religiosas e seculares que usam e abusam do nome de “Deus” para reproduzirem as suas estruturas cruéis e iníquas. Os teólogos da libertação e do cativeiro visualizam João Batistas seguidores de uma pedagogia do oprimido. Viva Paulo Freire! Viva Leonardo Boff!



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