Gilberto Gil, Capinan, Caetano Veloso, Os Mutantes, Nara Leão, Gal Costa, Tom Zé, Torquato Neto, Rogério Duprat. Nomes expressivos da cultura do Brasil e responsáveis pela produção artística de um dos mais importantes discos da grande discoteca brasileira. TROPICÁLIA OU PANIS ET CIRCENCIS é o título da mencionada obra musical. Um marco sonoro histórico, conceitual e desafinador do “coro dos contentes”. Barulhinho bom, provocativo e encantador tal qual a angelical imagem sonora de um “anjo louco e torto”. D(i)scoberta que atravessa gerações e continua potente na sua força inspiradora. Pérola pescada para ancorar mais um encontro da disciplina “Música Popular Brasileira e Encontro de Gerações”, ministrada no Programa Terceira Idade em Ação (PTIA), projeto extensionista da Universidade Federal do Piauí. As dores e as delícias de ser mãe foi o tema proposto para reflexão no dia 30 de abril de 2019. A fonte musical foi o citado LP tropicalista, gravado em uma significativa data: maio de 1968. Desafinação fonográfica em um contexto ditatorial brasileiro. Sociólogos e historiadores, através da música, ouvem cantos que trilham a história do Brasil. Da política aos nossos amores, o verbo ouvir é conjugado por quem escuta as bossas e batidas dos nossos brasis e com elas é levado a uma particular forma de narrar o processo histórico brasileiro. André Diniz e Diogo Cunha dão o toque para que trilhemos as ondas do Brasil cantado do choro ao funk.
No mês dedicado às mães, extraímos uma dupla de canções, a elas direcionadas, no memorável álbum. Concebidas por compositores de diferentes matrizes geracionais, as duas músicas, na diversidade tonal que apresentam, expressam as emoções e os sentimentos que mediam as maternas ações afetivas. Diversas em dramaticidade, narram os múltiplos ais das Salomés e Canôs, nomes plurais e representativos das experiências de concepções filiais. Mulheres na maternidade gozosa e dolorosa. No “limiar da vida”, elas subjetivam visões sobre os sentidos do ser ou não ser mãe. Subjetivações captadas pelas densas lentes bergmanianas. Corações maternos pulsam nas cores do cinema de Almodóvar e Gilda de Abreu. Pulsações cardíacas sonorizadas com o “Obrigado Mãe”, de Agnaldo Timóteo. Mamãe, mãezinha ou Mamma na masculina vocalização do canto popular. De “Nossa Senhora” ao “fogão de lenha”, o sentimental cantor agradece à “flor”, “um pedaço do céu” contido em três letras da “palavra mais linda”. Canções vocalizadas pelo filho artista, grato a “ela”, sua “heroína”, a “dona de tudo”, a “rainha do lar”. Gratidão cantada em dueto com Angela Maria.
Músicas, na ótica de Silvana Goellner, são “locais pedagógicos”. A audição musical começou com “Coração Materno”, drama lacrimejante de Vicente Celestino. No LP TROPICÁLIA OU PANIS ET CIRCENCIS, Caetano Veloso faz a sua releitura da melodramática composição celestina. Na referida aula, escutamos na operística voz de Vicente Celestino. Na sequência, ouvimos “MAMÃE, CORAGEM”, parceria de Caetano Veloso com Torquato Neto. No disco TROPICÁLIA, Gal Costa é a sua intérprete. Na nossa lúdica e pedagógica reunião, curtimos no registro vocal de Nara Leão. Na trilha das construções dos relacionamentos maternos, o acesso à ambígua humanidade dos mesmos, com as suas ambivalências e paradoxos, é feito pela via da imaginação criativa dos músicos sintonizados com a nobreza e a vilania dos seres humanos. As mães são feitas da carne que irmana todos os mortais. São geradoras de lucidez e equívocos. Humanas demais nos seus amorosos cuidados. Adoráveis e sufocantes em seus exageros. Todos (as) nós somos assim. Caso contrário, negaríamos os limites marcadores da nossa espécie carnal. Ligações amorosas, nas suas diversidades, são rebentos de construções sociais. Não são naturais e nem nascem prontas e acabadas. Resultam de investimentos afetivos. Numa palavra, trabalho. Paridores de sons, os tropicalistas cantam as uterinas mulheres, as diversas genitoras das quais são o rebento. Exalto a palavra concepção. Revivendo as radiolas, seguem as letras que tocaram no aparelho de CD usado na reflexiva conversa, embalada por notas musicais:
CORAÇÃO MATERNO (VICENTE CELESTINO)
DISSE UM CAMPÔNIO À SUA AMADA:
”MINHA IDOLATRADA, DIGA O QUE QUER
POR TI, VOU MATAR, VOU ROUBAR
EMBORA TRISTEZAS ME CAUSES, MULHER
PROVAR QUERO EU QUE TE QUERO
VENERO TEUS OLHOS, TEU PORTE, TEU SER
MAS DIGA, TUA ORDEM ESPERO
POR TI NÃO ME IMPORTA MATAR OU MORRER”
E ELA DISSE AO CAMPÔNIO, A BRINCAR:
“SE É VERDADE TUA LOUCA PAIXÃO
PARTE JÁ, E PRA MIM VAI BUSCAR
DE TUA MÃE INTEIRO O CORAÇÃO”
E A CORRER O CAMPÔNIO PARTIU
COMO UM RAIO NA ESTRADA SUMIU
SUA AMADA QUAL LOUCA FICOU
A CHORAR, NA ESTRADA TOMBOU
CHEGA À CHOUPANA O CAMPÔNIO
ENCONTRA A MÃEZINHA AJOELHADA A REZAR
RASGA-LHE O PEITO O DEMÔNIO
TOMBANDO A VELHINHA AOS PÉS DO ALTAR
TIRA DO PEITO SANGRANDO
DA VELHA MÃEZINHA, O POBRE CORAÇÃO
E VOLTA A CORRER, PROCLAMANDO:
VITÓRIA, VITÓRIA TEM MINHA PAIXÃO
MAS EM MEIO DA ESTRADA CAIU
E NA QUEDA UMA PERNA PARTIU
E À DISTÂNCIA SALTOU-LHE DA MÃO
SOBRE A TERRA O POBRE CORAÇÃO
NESSE INSTANTE UMA VOZ ECOOU:
“MAGOOU-SE, POBRE FILHO MEU?
VEM BUSCAR-ME, FILHO, AQUI ESTOU
VEM BUSCAR-ME, QUE AINDA SOU TEU”
MAMÃE, CORAGEM (CAETANO VELOSO/TORQUATO NETO)
MAMÃE, MAMÃE, NÃO CHORE
A VIDA É ASSIM MESMO
EU FUI EMBORA
MAMÃE, MAMÃE, NÃO CHORE
EU NUNCA MAIS VOU VOLTAR POR AÍ
MAMÃE, MAMÃE, NÃO CHORE
A VIDA É ASSIM MESMO
EU QUERO MESMO É ISTO AQUI
MAMÃE, MAMÃE, NÃO CHORE
PEGUE UNS PANOS PRA LAVAR
LEIA UM ROMANCE
VEJA AS CONTAS DO MERCADO
PAGUE AS PRESTAÇÕES
SER MÃE
É DESDOBRAR FIBRA POR FIBRA
OS CORAÇÕES DOS FILHOS
SEJA FELIZ
SEJA FELIZ
MAMÃE, MAMÃE, NÃO CHORE
EU QUERO, EU POSSO, EU QUIS, EU FIZ
MAMÃE, SEJA FELIZ
MAMÃE, MAMÃE, NÃO CHORE
NÃO CHORE NUNCA MAIS, NÃO ADIANTA
EU TENHO UM BEIJO PRESO NA GARGANTA
EU TENHO UM JEITO DE QUEM NÃO SE ESPANTA
(BRAÇO DE OURO VALE 10 MILHÕES)
EU TENHO CORAÇÕES FORA PEITO
MAMÃE, NÃO CHORE
NÃO TEM JEITO
PEGUE UNS PANOS PRA LAVAR
LEIA UM ROMANCE
LEIA “ALZIRA MORTA VIRGEM”
“O GRANDE INDUSTRIAL”
EU TANDO AQUI VOU INDO MUITO BEM
DE VEZ EM QUANDO BRINCO CARNAVAL
E VOU VIVENDO ASSIM: FELICIDADE
NA CIDADE QUE EU PLANTEI PRA MIM
E QUE NÃO TEM MAIS FIM
NÃO TEM MAIS FIM
NÃO TEM MAIS FIM