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PPGS020 - SEXUALIDADE, IDENTIDADES E SUBJETIVIDADES - Turma: 01 (2019.1)

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  • TELA SOCIOLÓGICA
  • 15/05/2019 22:32
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    TELA SOCIOLÓGICA: NÃO ROUBARÁS. DIA 16/05/2019. 16 HORAS. SALA DE VÍDEO I (CCHL/UFPI). Krzysztof Kieslowski é o criador de uma obra apresentada como “monumental”. Aludo a DECÁLOGO (1988), embasada nos dez mandamentos bíblicos. Trabalho de densidade filosófica que fundamenta a imagem de um cineasta pensante. O pensamento complexo ganha discurso visual nas imagens criadas por um diretor filósofo. Da dezena dos filmes que constituem o conjunto fílmico, destaco NÃO ROUBARÁS. O tema da maternidade é apresentado na sua complexidade e sintonizado com uma perspectiva sociológica que vê a realidade como uma construção social. Somos biopsicossociais. Desnaturalizar as relações sociais é um caminho teórico-metodológico coerente com a conjugação do verbo tornar-se. Mulheres tornam-se mães. Muitas delas explicitam o desejo de não terem filhos(as). A mencionada pronúncia verbal não se limita ao debate sobre gênero e sexualidade.

    As mulheres geram suas crias pelas vias anatômicas dos seus aparelhos reprodutores femininos. Dado biológico. O que vai acontecer depois que os rebentos saem dos seus corpos e são postos no mundo, dependerá dos investimentos afetivos acionados. Ideia de matriz construcionista que media todos os relacionamentos humanos, em especial os maternos. O simples fato de dar à luz a um filho(a), não garante a consolidação de um relacionamento com consistência amorosa. As construídas relações entre pais e filhos(as), nas suas humanidades, são mediadas por carinhos e asperezas. É exemplar, na narrativa fílmica de Kieslowski, o caso que envolve Ewa, a mãe, e a sua filha Majka. A primeira, em diálogo com Stefan, o seu marido, afirma: “Não sabemos nada da nossa própria filha. Sobre seus amigos... Sobre onde ela pode estar... Nós a perdemos”. A segunda, em conversa com Wojtek, pai da sua filha, expõe: “Penso há algum tempo que tenho ódio dela”. Pensadores e literatos, ao longo da história, reforçam a ideologia da sagrada família, núcleo e pilar societário. Honoré de Balzac, nas suas letras, expressa a sua exaltação institucional: “A família será sempre a base das sociedades”. Sófocles, em pagela franciscana, é citado em mensagem de reforço aos vínculos familiares, nas suas funções integradoras: “Os filhos são âncoras que mantêm as mães agarradas à vida”. Na cena fílmica de NÃO ROUBARÁS, Majka, na sua tentativa de conquistar o afeto filial “roubado” de Ania, externaliza a nossa ambivalente faceta humana: “E quanto a matar, acho que por ela eu poderia matar”.

    O motivo da mágoa entre Majka e sua mãe tem suas raízes quando ela, aos 16 anos, engravida do seu professor de polonês (Wojtek), docente da escola onde Ewa é a diretora. Um escândalo. Situação constrangedora a ser conduzida sem alardes e de modo secreto. Nada de visibilidade para não afrontar a moral pública. No final da conturbada e escondida gestação, Ewa, a avó, em um contexto social coercitivo, mantém o sigilo situacional e contando com a cumplicidade sigilosa de poucos, registra Ania como filha. Em um momento de tensão, a “mãe-avó” externaliza: “Ania é minha. Está registrada como filha”. Majka dá a sua resposta ao “roubo” cometido pela sua genitora: “Você roubou meu bebê”. Nos desdobramentos subjetivos do sentir-se roubada, pluraliza os roubos que afetam o âmago do seu ser. E prossegue nas suas queixas filiais: “... Roubou meu bebê e minha maternidade, e meu amor... Você roubou a mim mesma... Tudo”. Em atitude radical, Majka rapta Ania, de 6 anos e gera desassossego no seu contexto familiar. Ela mesma problematiza o rapto que praticou: “É possível roubar algo que te pertence? ...Então quer dizer que não roubei”. No contato direto com Ania, o fruto do seu ventre, principia um diálogo revelador: “A mamãe não é sua mãe”. A criança, no “esconde-esconde” em que foi posta, pergunta: “Não tenho mãe?”. Na resposta, Majka é afirmativa: “Tem” e revela não ser a sua “irmã” forjada: “A sua mãe verdadeira... eu sou sua mãe”. Ania, criada por Ewa, em seu processo de socialização, experimentou uma maternidade construída não pela mulher que a pariu mas pela que assumiu os múltiplos cuidados para com o ser chegado às suas mãos. Em função desta umbilicalidade produzida no cuidar cotidiano, Ania estranha quando Majka pede para chamá-la de mamãe. “Deveria me chamar de mamãe”. Ania, em situação de estranhamento e para a frustração de Majka, insiste em chamá-la pelo seu nome próprio. Por não estar habituada a fazeres relacionados ao como tratar de crianças, ela tem dificuldades em acalmar Ania quando a menina apresenta pesadelos no sono. Ewa, cuidadora experimente, resolve o problema sem dificuldade.

    El enigma de la maternidad e El amor bajo todas sus formas, para lo mejor y para lo peor, coloriram as telas almodovarianas. Jean-Max Méjean, ao escrever sobre Pedro Almodóvar, destaca cenas fílmicas nas quais as mães exibem suas plurais manifestações: “Una dulce canción que me cantaba mi madre” e “El amor amargo de uma madre”. Em meio ao pluralismo sentimental materno, indaga: “El amor resulta perjudicial?”. No percurso reflexivo de Ismail Xavier, cultuamos obras cinematográficas pela multiplicidade de leituras que oferecem. É a sétima arte, um culto moderno, promovendo a contemplação do belo, pela fotogenia, e emitindo os seus discursos cinematográficos. O cinema, no seu idealismo estético, abre para múltiplas possibilidades de olhares. Na abrangência da sua linguagem, excita a nossa reflexão para as variadas situações cotidianas. A experiência de com ela trabalhar, constitui um exercício pedagógico e revela um estimulante instrumento a ser utilizado para as nossas pesquisas temáticas. Filmes são fontes imagéticas geradoras de interesse acadêmico e prazer visual. A arte cinematográfica de Kieslowski, particularizando o seu DECÁLOGO, apresenta narrativas prenhes de beleza e excitação reflexiva.

    Famílias fazem parte dos nossos shows cotidianos. Constituem arenas de consensos e tensões. Amor e ódio atravessam as suas rotinas emocionais e sentimentais. Entre as mães e os filhos (as), em particular, abraços carinhosos são dados e navalhadas verbais são proferidas nas ordinárias brigas do dia-a-dia. Assim caminham os nossos universos familiares. Kieslowski sabe disso e traduz, com as suas cores, as complexas relações de uma instituição tradicional e que vem incorporando novos arranjos nos tempos atuais. Sem maniqueísmos, o diretor de NÃO ROUBARÁS projeta mães e filhos (as) nas suas ambiguidades e contradições. Entre acertos e equívocos, explicitam a grandeza e os limites dos seus discursos amorosos. Kieslowski é mestre em retratar os múltiplos aspectos que envolvem as nossas escolhas e tomadas de posição. Foge das visões fáceis do tipo ou isto ou aquilo e mostra uma aquarela multicor para enfrentá-las, ao invés do simplório preto no branco. Um cineasta que dispara questões, incomoda e não dogmatiza. O seu DECÁLOGO não apresenta objetivos evangelizadores. Ao contrário, reacende clássicos debates que envolvem o ruidoso diálogo entre fé e razão.



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