Orlando Silva, o cantor das multidões, participou da disciplina “Música Popular Brasileira e Encontro de Gerações”, no dia 14 de maio de 2019. Uma viagem musical para os anos 30, do século passado. Ouvimos a potência vocal de um dos “reis da voz” da Rádio Nacional. No texto de Ronaldo Conde Aguiar, uma audição sonora com “o cantor que eletrizava quem o ouvisse”. Gravações originais com o intérprete de clássicas canções da nossa história fonográfica: Carinhoso (Pixinguinha – João de Barro); Lábios que Beijei (J. Cascata – Leonel Azevedo) e Rosa (Pixinguinha). Trilogia de consagradas composições cantadas por um pescador de pérolas musicais. Samba, noturno, canção, valsa, samba-canção, fox-canção e valsa-canção. Ritmos e gêneros musicais cantados pelo vozeirão referência de Orlando Silva.
Revivemos um capítulo histórico especial da arte do Brasil para refletirmos sobre uma singular personagem do cotidiano da boemia: a prostituta, ou a puta, nos versos de Carlos Drummond de Andrade. Na sua poética, ganha vez “a fornecedora”, a habitante da “Rua de Baixo onde é proibido passar”. “Quente”, no seu meretrício, ela é a que “arreganha dentes largos de longe. Na mata do cabelo se abre toda, chupante boca de mina amanteigada...”. Da Geni buarqueana à Dama da noite de Caio Fernando Abreu, as “damas das camélias”, as Marias Madalenas, Brunas, mulheres da vida, quengas e cortesãs fazem as suas histórias cotidianas. Foras da “roda”, estigmatizadas, as “profissionais do sexo” subjetivam as dores e as delícias de serem o que são.
Sem julgamentos e nada de jogar pedras, refletimos, à luz das ondas radiofônicas, sobre as suas existências. Para a consecução de tal objetivo, viajamos pelas trilhas do repertório de Orlando Silva e selecionamos uma dupla de sambas: NO QUILÔMETRO 2 (J. Aymberê) e DAMA DO CABARÉ (Noel Rosa). O primeiro, lançado em agosto de 35 e o segundo, em setembro de 36. “Cidade mulher” sonorizada por compositores e intérpretes cronistas dos seus tempos. Em notívagas aventuras, registram o dia a dia das buscas afetivas e sexuais, no mercado dos corpos. Quanto custa um programa? Nas caladas das noites, lâmpadas vermelhas sinalizam os pontos onde Cabírias aguardam seus clientes para Fellini filmar. Filmes que, em forma de “melodrama”, falam japonês, narram a “história de uma prostituta” e expõem um discurso visual exibidor do “portal da carne”, sob as inventivas lentes de Seijun Suzuki. Na companhia das letras alencarinas de Lucíola, encontram-se os “que vivem da prostituição das mulheres pobres e da devassidão dos homens ricos”. É a confissão literária da “filha prostituída”, vendida, envergonhada pelo seu “erro”, “vício” e “infâmia” mercantilizada no “abismo da depravação”. Entre risos e lágrimas, a boemia dá os tons dos cabarés citadinos onde os sujeitos desejantes dão “beijos viciosos” e fazem “carinhos pecaminosos”. Seguem as letras que ancoraram as nossas reflexões sobre as protagonistas da “profissão mais antiga da história”.
NO QUILÔMETRO 2 (J. AYMBERÊ) 1935
NO QUILÔMETRO DOIS DA ESTRADA DA VIDA
EXTENUADA E VENCIDA EU TE ENCONTREI
DEI-TE MEU BRAÇO FORTE COMO ARRIMO
E TE TRATEI COM TANTO MIMO
COMO A NINGUÉM NUNCA TRATEI.
DA VIDA DE CAMBULHADA QUE LEVAVAS
PASSASTE A VIVER FELIZ COMO SONHAVAS
PASSEI A VIVER FELIZ COMO EU SONHEI.
MAS DIZ O DITADO QUE JAMAIS SERÁ VINTÉM
QUEM TEM O DESTINO PRA DEZ RÉIS
O MEU CASTELO, MEU SONHO BELO,
DESTRUÍSTE COM OS PÉS
PRA VOLTARES DEPOIS
AO TEU QUILÔMETRO DOIS.
DAMA DO CABARÉ (NOEL ROSA) 1936
FOI NUM CABARÉ NA LAPA
QUE EU CONHECI VOCÊ
FUMANDO CIGARRO, ENTORNANDO CHAMPAGNE
NO SEU SOIREÉ.
DANÇAMOS UM SAMBA
TROCAMOS UM TANGO POR UMA PALESTRA
SÓ SAÍMOS DE LÁ MEIA HORA DEPOIS
DE DESCER A ORQUESTRA.
EM FRENTE À PORTA UM BOM CARRO NOS
ESPERAVA.
MAS VOCÊ SE DESPEDIU E FOI PRA CASA A PÉ.
NO OUTRO DIA LÁ NOS ARCOS EU ANDAVA
À PROCURA DA DAMA DE CABARÉ.
EU NÃO SEI BEM SE CHOREI NO MOMENTO EM
QUE LIA
A CARTA QUE EU RECEBI NÃO ME LEMBRO DE
QUEM
VOCÊ NELA ME DIZIA QUE QUEM É DA
BOEMIA,
USA E ABUSA DA DIPLOMACIA
MAS NÃO GOSTA DE NINGUÉM.