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PPGS003 - SEMINÁRIO DE PROJETO - Turma: 04 (2019.2)

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  • TELA SOCIOLÓGICA
  • 14/08/2019 00:00
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    TELA SOCIOLÓGICA: UMA GALINHA NO VENTO. 15/08/2019. 16 HORAS. SALA DE VÍDEO II (CCHL/UFPI). Yasujiro Ozu (1903-1963) é sinônimo de simplicidade, delicadeza e profundidade. Adjetivações para a arte de um mestre cineasta. Do cotidiano japonês, imprime a sua marca na abordagem das questões humanas universais. Uma qualidade comum a todos os autores clássicos. Do seu vasto repertório fílmico, destacamos UMA GALINHA NO VENTO (1948). Complexidade é palavra-chave na forma como Ozu aborda os dramas humanos. Tokiko tem um filho. O seu marido está ausente. A guerra fez com que ele passasse quatro anos afastado do convívio familiar. Neste intervalo de tempo, Hiro, o rebento filial do casal, é acometido por uma colite. Sem a presença paterna, Tokiko enfrenta uma dramática situação financeira. Como arranjar dinheiro para pagar a internação do menino? O pagamento não pode ser efetuado em prestações. A profissional da saúde estabelece a norma monetária: “o valor por 10 dias de tratamento deve ser pago de uma vez”. A conjuntura econômica é desfavorável. Nas falas das personagens são explicitadas as dificuldades financeiras de um momento precário, de carestia.

    Em um contexto de carência material, a mãe, ainda no espaço onde o filho está internado, desabafa para a criança: “não sei como vou fazer para pagar, Hiro. Não tenho dinheiro. Diga-me, o que devo fazer? Estou numa situação difícil”. Endividada e com o peso da culpabilidade, fala com o garoto adormecido: “foi uma besteira a mamãe te dar aquele bolo”. Circunstância desesperadora que levará Tokiko a tomar uma decisão radical. Para conseguir dinheiro, ela vendia quimonos e outros produtos, mas a renda obtida era insuficiente para saldar a dívida terapêutica surgida com a enfermidade de Hiro. No seu desespero, acata o toque dado por uma mulher frequentadora da “Casa Sakurai”, local de mercantilização dos corpos ou prostíbulo de negócios sexuais. Na sua maternal angústia, Tokiko cedeu à sugestão da Srta. Orie: “uma mulher bonita como você pode se virar de outro jeito”. Por uma noite apenas, a aflita mãe vai negociar o seu corpo, em troca mercantil, para saciar o apetite sexual de outro homem, fora da instituição matrimonial. Ao afrontar a moral vigente, Tokiko vai encarar as recriminações de pessoas próximas a ela. De uma das suas amigas mais íntimas, recebe o seguinte questionamento: “o que acha que Hiro pensaria se soubesse como conseguiu o dinheiro?” Na resposta, formula perguntas que levam a sua interlocutora a pensar sobre como ela reagiria em uma similar situação: “eu faria qualquer coisa para o Hiro ficar bem. Imagine se precisasse de dinheiro para o tratamento de seu filho. O que você faria? Como conseguiria o dinheiro? O que uma mulher pode fazer?”

    Com o cerco fechado ao seu redor, Tokiko enfrenta uma particular situação que abre para múltiplas interrogações axiológicas e morais. Julgar, condenar e atirar pedras, em um momento pessoal e coletivo adverso, crítico do ponto de vista econômico, não é a atitude humana justa levando em consideração os limites impostos pelo quadro social daquele tempo. Adversidade, vulnerabilidade e precariedade conjunturais impondo restrições às escolhas a serem feitas. Com a sua liberdade comprometida, Tokiko priorizou salvar a vida de Hiro. As consequências da sua decisão trouxeram os preços a serem pagos por quem ousa romper com as regras da normalidade estabelecida. O bom funcionamento da sociedade foi atingido pela sua “sem-vergonhice”, diriam os moralistas e funcionalistas. Os “bons costumes” foram afetados pela postura “indecente” de uma mulher casada e desesperada.

    Na sua honestidade, quando do retorno do marido para casa, Tokiko não esconde o que foi forçada a fazer para angariar recursos em prol da cura de Hiro. De início, a reação marital não foi compreensiva, porém surpreendente. Curioso, ele vai ao lugar onde a sua esposa angariou dinheiro com sexo e penetra no interrogatório que faz a uma jovem prostituta convocada para servi-lo. Fusako, de 21 anos, não é usada sexualmente por ele, mas vai ser alvo de uma série de perguntas formuladas por um homem desconcertado pela ousadia da sua esposa. E seguem os questionamentos básicos: “por que você faz?”; “como é trabalhar nisso?”; à resposta “é terrível”, ele aprofunda: “então por que não desiste?”. O programa de Fusako, com o esposo de Tokiko, fica limitado a um questionário, respondido de modo a realçar uma visão economicista sobre os fatores que levam alguém a prostituir-se. Mesmo não praticando o ato sexual, Fusako recebe o dinheiro do angustiado marido que também certificou-se de que a sua esposa só tinha ido uma vez naquele lugar. Ele também comprometeu-se a tirar Fusako do seu estigmatizado ofício de “puta”. Faz o seu aconselhamento, mediado por princípios morais: “consiga um emprego decente”. Na conversa, ela explicita a consciência de quem corporifica um estigma, uma marca identitária por ter cometido um “desvio”: “mesmo se eu tentasse sair dessa vida, os homens me desprezariam”. Subjetivação feminina evocativa dos outsiders estudados por Howard S. Becker.

    Um diálogo que afeta o amante de Tokiko. Um exercício socioantropológico de querer saber das motivações que levam um indivíduo a praticar determinadas ações. Quais os seus sentidos? Sociologia interpretativa ou compreensiva. Interlocução que leva um homem a tentar colocar-se no lugar da sua esposa. Abalado pela atitude da sua cônjuge, passa a tratá-la de modo áspero. Submissa, com culpa, Tokiko adota uma posição servil no confronto com o seu amante: “faça o que quiser comigo. Trate-me como quiser, que eu aceitarei. Bata em mim! Me odeie!”. No turbilhão de sentimentos e emoções desencadeados pela iniciativa, inicialmente incompreendida de Tokiko, o marido é levado a um processo de introspecção que, em meio a agressões físicas e asperezas verbais a ela remetidas, chega a um ponto no qual ele é conduzido a repensar os seus procedimentos condenatórios. Compassivo, revê os seus posicionamentos e resolve pelo investimento na tentativa de virar uma página “errada” na história da sua companheira. No caminho de uma reconciliação, ele emite uma fala apaziguadora: “eu não vou te xingar. Eu só tenho compaixão por você. Eu entendo que você não tinha outra escolha na época. Vamos esquecer isso. Foi apenas um grande erro. Ficar remoendo isso não vai nos fazer bem. Vamos deixar isso para lá”.

    Yasujiro Ozu apresenta elementos contextuais para refletirmos sobre a vida cotidiana dos indivíduos que experimentam a exclusão, ou seja, os que estão fora da roda, segundo a Dama da Noite de Caio Fernando Abreu. As mulheres marginalizadas, as prostitutas, levantam problemas morais em um contexto em que são vistas como “desviantes sociais”, destoantes, disfuncionais e negadoras da sagrada ordem familiar. Encarnações do perigo. Identidades pessoais sob os olhares dos poderes censores, vigilantes e punitivos. Pessoas que carregam estigmas na “carreira moral” que constroem e são focalizadas pelas lentes sociológicas de Erving Goffman. Em suas “notas sobre a manipulação da identidade deteriorada”, os estigmatizados ocupam uma posição central. São “delícias sociológicas” encobertas nas tramas fílmicas de um singular diretor cinematográfico. Da terra do saquê para o mundo globalizado, Yasujiro Ozu é exemplar para quem propõe uma introdução à Sociologia através dos filmes. O fazer sociológico, no cinema pensante, parte do referencial de Julio Cabrera na sua proposta teórico-metodológica reflexiva e apaixonante. Sob sua inspiração, uma abordagem cine-sociológica projeta a visualização dos “conceitos-imagem” telânicos. As “carreiras desviantes” das páginas sociológicas de Howard S. Becker ganham visualidade com a sensível expressividade do olhar de Yasujiro Ozu.



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