Música para usar na sala de aula. Mas como usá-la? De que modo os músicos podem ajudar no aprendizado de outras disciplinas? Na linha traçada por Martins Ferreira, desponta a preocupação “...com o desenvolvimento de novas e produtivas técnicas de ensino”. Ensinar na companhia das letras musicadas. Sensível a questões de método, acesso aos mais variados temas através dos textos musicais. O último exercício focalizou o tema da amizade. Na disciplina “Música Popular Brasileira e Encontro de Gerações, refletimos sobre os sentidos de ter amigos a partir de uma composição contida no CD “Tudo É Um” (2019), da cantora/compositora Zélia Duncan. “Canção de Amigo” (Christiaan Oyens/Zélia Duncan) é o título da faixa sonora que embasou a reflexão com a turma do Programa Terceira Idade em Ação da Universidade Federal do Piauí. Zélia Duncan marca presença na história musical brasileira com a sua estreia no disco “Outra Luz”, um LP originalmente lançado em 1990. Cantar a amizade faz parte dos seus shows. “Amigo é Casa” (2008), CD e DVD gravados ao vivo por ela, em parceria com a cantora Simone. “Canção Amiga” (Milton Nascimento/Carlos Drummond de Andrade) foi incluída no repertório de “Invento +” (2017), trabalho no qual Zélia Duncan e Jaques Morelenbaum interpretam Milton Nascimento. Em outro memorável registro fonográfico, “Saudade do Brasil” (1980), Elis Regina cantava “Canção da América” (Milton Nascimento e Fernando Brant) e valorizava as nossas afeições amicais: “Amigo é coisa pra se guardar/ Debaixo de sete chaves/ Dentro do coração...”. Anos antes, em 1967, foi a vez de Gilberto Gil exaltá-lo em “Louvação” (Gilberto Gil/Torquato Neto): “...Louvo a amizade do amigo/ Que comigo há de morrer...”.
O sociólogo trabalha com as suas audições sonoras. Compositores expressam os seus olhares com a linguagem específica que trabalham. Subjetivam concepções de mundo com as notas criadas pelas suas particulares sensibilidades. Imagens sonoras de diversas tonalidades e cores. Imaginações musicais e sociológicas em diálogo transdisciplinar. Nas partituras mozartianas, as comunicações do pensamento, emoções e sentimentos de um músico situado no seu tempo histórico. Norbert Elias, no livro “Mozart, Sociologia de Um Gênio”, objetiva “traçar um quadro claro das pressões sociais que agem sobre o indivíduo”. No centro reflexivo, a figura do artista no ser humano. Iluminar as conexões entre a experiência mozartiana e a produção artística, “...também é importante para uma compreensão de nós mesmos como seres humanos”. É a complexidade sociológica rompendo as barreiras entre os campos disciplinares e tecendo diálogos entre os variados saberes. Sabedoria encontrada na poética de Mario Quintana. Provo, com ele, “do sabor das coisas” e fico ébrio com a sua amical poesia: “Por mais raro que seja, ou mais antigo, / Só um vinho é deveras excelente: / Aquele que tu bebes calmamente/ Com o teu mais velho e silencioso amigo...”.
Amigos são referências nas nossas vidas. Em número reduzido, compartilham dos nossos ais gozosos e dolorosos. Conosco nas baladas e nos leitos hospitalares. Colegas temos em muito maior quantidade. Amizades são exigentes, profundas, duradouras. São casas construídas sobre rochas. Requerem dedicação, entrega, cumplicidade. Na sala de aula, o espaço foi aberto para que os participantes falassem das suas experiências pessoais de amizade. Da audição musical partimos para ouvir as suas subjetivações. Canções disparam conteúdos para serem refletidos. Pensar com o “auxílio luxuoso” da arte. No encontro de 03 de setembro de 2019, as duas músicas selecionadas estimulavam os seus ouvintes a refletirem sobre os seus afetos. Afetividades a demandarem por cuidados, responsabilidades e envolvimentos. Seguem as letras lidas e ouvidas na conversa embalada a som. Nos moldes de um sarau literário, um produto “biscoito fino” para ouvidos atentos aos toques artísticos. O barulhinho bom de Zélia Duncan provocou significativas emissões de falas sobre o valor de ter amigos:
CANÇÃO DE AMIGO (Christiaan Oyens/Zélia Duncan)
Músicas, memórias
Nostalgias felizes
Carinhos garantidos
Reunião de queridos
Defeitos perdoados
Abraços antigos, apertados
Ser quem se é
Aceitar o que não deu pra ser
Receita pra não sofrer
Não ser perfeito, mas ser você
Conforto redobrado
Apelidos esquisitos
Gargalhadas de criança
Esquece a desesperança
Em paz tudo faz sentido
Esquece o desiludido
Amor pra sempre é amor de amigo
ME FAZ UMA SURPRESA (Zeca Baleiro/Zélia Duncan)
Me faz uma surpresa
Manda um sinal que seja
Uma flor na minha porta
Um carinho na bandeja
Um poema por email
Uma carta, um galanteio
Pode ser por um portador
Ou pelo correio
Nada que seja caro
Algo simples, amoroso,
lindo, raro
Mas faz uma surpresa
Um sinalzinho que seja!
Passa por baixo da porta
Deixa em cima da mesa
No espelho do banheiro
Rabisca o quarto inteiro
Diz coisas que ninguém diz
Só pra me fazer feliz
Algo que me alegre o dia
Um blues, um rap,
uma canção,
fagulhas de poesia