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PPGS013 - TEORIA SOCIOLÓGICA I - Turma: 01 (2020.1)

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  • COM O JESUS DA MANGUEIRA, FICO EM CASA
  • 05/04/2020 10:41
  • Texto:

    Estou com o Cristo da Mangueira e não abro. O Jesus mangueirense, sem preconceitos, caiu no samba e é libertador. Faz parte do nosso show cotidiano. Vive na sociedade do espetáculo. Coloca o pé no chão. É encontrado dormindo na calçada da rua em que moramos. Seu nome é exclusão, pobreza e é visto diariamente nas várias faces das opressões encarnadas nas rotinas diárias dos deserdados. Gente impedida de brilhar. A quem estão entregues? Ovelhas sem pastor, esquecidas pelos ditos poderes públicos. E também exploradas pelos agentes privados nas precárias condições de trabalho nas empresas em que trabalham. Trabalhadores alienados, insatisfeitos, inseguros e sem reconhecimento. A justiça para cuidar dos seus direitos e garantias trabalhistas vem sendo golpeada. E o que os cristãos têm a ver com a precariedade das condições em que vivem os que trabalham? A fé sem obras não é morta? Cristãos assinam o manifesto dos indignados. Os seus fundamentos estão na Bíblia: “Não, o jejum que eu prefiro é este: Soltar as algemas injustas, soltar as amarras do jugo, dar liberdade aos oprimidos e acabar com qualquer escravidão!”. Eis um fragmento bíblico exemplar, de cunho profético e político, para justificar a ideia de um engajamento cristão com alicerce teológico .

    O Jesus da Teologia da Libertação demanda por contextualização histórica. Como desconectar fé e política? Cristo foi assassinado pelos poderosos do seu tempo. Em Conselho, as autoridades judaicas tramaram a sua morte. Pilatos é modelo atemporal do político estrategista, dúbio e escorregadio. Jesus provocou a ira das forças políticas e sacerdotais a serviço das estruturas opressivas. Foi rejeitado por anciãos, sumos sacerdotes e doutores da lei. Os partidos situacionistas da sua época viam nele uma pedra no caminho dos seus projetos de dominação. O farisaísmo e a hipocrisia dos “sepulcros caiados” foi alvo das críticas cristãs. Jesus provocou os burocratas e legalistas que filtram uma mosca e engolem um camelo. Ficam presos em formalismos e minúsculos detalhes e deixam passar coisas graves e escandalosas. O homem nasceu para a lei ou esta deve estar a seu serviço? Salvar uma vida precede a guarda do sagrado sábado.

    A ênfase no Cristo libertador é resultado da minha básica formação em princípios teológicos. Nos primórdios dos anos 80 (século XX), engajado em grupos de jovens católicos, na Arquidiocese de Fortaleza, conheci a experiência eclesial das Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s) e os seus referenciais libertadores. Gustavo Gutiérrez e Leonardo Boff. Encontro conceitual, teórico e analítico que passou a direcionar as minhas leituras sobre o Jesus evangélico. Uma identificação com os teólogos da libertação passou a embasar o meu olhar sobre um Cristo a ser situado em um espaço temporal e suas condições econômicas, políticas, sociais, culturais e religiosas. Um cristianismo engajado nas ações voltadas para a satisfação das necessidades ligadas às múltiplas dimensões humanas. Pão, saúde, educação, moradia, salário, afeto, transporte, teatro, lazer e outras demandas. O cristão não pode ficar indiferente aos gritos de socorro dos humanos.

    Na sua opção preferencial e solidária pelos pobres, Jesus proferiu o seu discurso profético e indignado, no anúncio e na denúncia das estruturas sociais cruéis, iníquas e desumanas. O Jesus de 2020 continua fora da roda, não tem emprego, mora na rua, é vítima de feminicídios e atitudes homofóbicas. É estigmatizado, invisível. É o pobre criminalizado. Para agravar o contexto vulnerável e arriscado em que vive, agora enfrenta a conjuntura pandêmica da COVID-19. O samba de enredo 2020 da G.R.E.S. Estação Primeira de Mangueira gerou polêmica, desafinando o coro dos contentes, pregadores de um Cristo opiáceo, mascarador e comprometido com a reprodução de uma ordem social governada para uma minoria de privilegiados. Moldam Jesus em uma imagem discursiva aliada aos seus objetivos classistas. Classes sociais sim. Karl Marx continua sendo um importante pensador para compreendermos uma sociedade camarotizada, desigual e injusta. Paulo Freire concordaria comigo. Os pensamentos de Jesus e Marx são dialogáveis entre si. As convergências e divergências entre eles mobilizam forças que rumam em direção a modelos sociais mais justos e menos desiguais. Cristãos e marxistas dividem projetos voltados para a defesa e promoção dos direitos e da dignidade humana. Sobre a possibilidade de diálogos, evoco o registro editorial de uma conversa entre Fidel Castro e Frei Betto sobre a religião.

    Revolução é palavra do imaginário sobre a atuação de Jesus histórico. A canção popular brasileira expõe a ideia de Cristo revolucionário. Em 1973, sob um contexto ditatorial, o cantor/compositor Antonio Marcos cantava “O Homem de Nazareth” (Claudio Fontana), aquele que “...revolucionou o mundo inteiro”. Circulam diversas imagens de Cristo, moldadas em função da justificativa dos mais variados interesses. Uma imagem de um Jesus adocicado, que não incomoda e nem toca nas dolorosas feridas sociais, resulta de uma leitura evangélica rasa. Cena marcante e a ser atualizada é a da expulsão dos vendilhões do templo. Exemplar ato de indignação. A casa de oração foi transformada em centro comercial. Jesus, enfurecido, outrora e hoje, acompanha o mercado religioso da prosperidade onde os pedidos a ele direcionados são feitos pela via do telefone celular de um pastor. E mais: lotes no céu são negociados. Empreendedorismo das “pequenas igrejas, grandes negócios”. Charlatanismo religioso para a patrulha policial. Lideranças religiosas milionárias. Cristo sendo uma figura manipulada, instrumento a serviço dos interesses ideológicos das classes dominantes. Ideologia oculta, mascara. Na globarbarização mercadológica é reatualizada a clássica frase que apresenta a religião como o “ópio do povo”. A ciência da história traz exemplos de tempos pretéritos. Em tristes memórias, a evocação medieval e inquisitorial dos santos inquéritos em registros históricos do uso do nome de Deus para semear falas evangélicas reacionárias. Ao invés da vida, semeavam a morte em abundância. Campo conflituoso e multifacetado é o da religião, atravessado por correntes, tendências e vertentes variadas. Em paralelo à atuação dos alienadores religiosos, encontramos os que, na linha de Martin Luther King, evangelizam com propósitos libertadores e comprometidos com a superação das injustiças e desigualdades. Estes entenderam o Cristo mangueirense, sintonizado com o Deus dos cativos e oprimidos.

    A vida está cara, rara e banalizada. Há quem diga que tudo está por um real. O Cristianismo das grandes navegações históricas, com a conquistadora espada e a cruz eurocêntrica que atravessou mares, foi cúmplice dos genocídios praticados contra os ameríndios. Vejo a atual crucificação cristã no cotidiano dos nossos brasis desiguais, excludentes e apartados. Apartheid social à brasileira. Calvários no batente diário dos sem voz e vez. Na cruz carioca do sambódromo de 2020, a Mangueira viralizou com a postagem de um jovem periférico crucificado e furado de balas. Eloquente imagem dos crucificados nossos de cada dia. Os quilombos de hoje ocupam o território das favelas, dos morros, das aldeias, dos lagamares fortalezenses e outros “perigosos” espaços urbanos. Não canso de repetir a ideia que encerra violência no seu âmago: Os lugares associados à presença de gente pobre, são vistos como o habitat do perigo, de gente suspeita. É a chamada criminalização da pobreza. Na “Belíndia” brasileira, os Cristos atuais seguem em suas mortes civis, com as suas cidadanias negadas em um país de precários índices de desenvolvimento humano.

    O Jesus mangueirense da Sapucaí carioca representou os “pequeninos”, os órfãos e as viúvas bíblicas descuidadas e desassistidas pela irresponsabilidade e descompromisso dos “pastores” governamentais que não cumprem as suas promessas de assisti-los. Ecoa o clamor do abandono evangélico: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?”. Em meio à desassistência, carentes e decepcionados, caem nas mãos de figuras religiosas sedutoras e carismáticas com as suas tentadoras promessas de vida próspera e salvação. Lobos sob pele de cordeiros. Desamparados, em um estado de mal estar social, vivem em condições sociais negadoras dos princípios básicos do Cristianismo, entre os quais a justiça. Como encontrar a paz em contextos marcados por injustiças institucionalizadas? Bandeira branca em tronos manchados de sangue? Pacifismo em chãos da morte anunciada dos cabras marcados para morrer? Cristo pedinte e amedrontador vive nas ruas das pauliceias e fortalezas muradas e vigiadas. Muros equipados com arsenal tecnológico de ponta, em condomínios fechados e distantes dos perigosos e indesejáveis moradores das zonas periféricas.

    As imagens telânicas ilustram as apartações: “Os Miseráveis” (2019), na versão cinematográfica de Ladj Ly, traz a clássica narrativa literária de Victor Hugo para a periferia francesa muçulmana, negra, pobre e refugiada. Uma Paris sem glamour. No filme coreano “Parasita” (2019), de Bong Joon-Ho, os 4 membros pobres da família que vai trabalhar em uma mesma casa, de ricos patrões, incomodam a estes por exalarem um cheiro singular, também sentido nos metrôs. Os pobres, estranhos, criminalizados, incômodos, devem ser mantidos longe das residências onde habita a riqueza. Politizada, a escola de samba Mangueira, na sua pedagogia escolar, veio com o Cristo do oprimido, o avesso de um Jesus construído em harmonia com os interesses dos opressores.

     



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