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PPGS013 - TEORIA SOCIOLÓGICA I - Turma: 01 (2020.1)

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  • A ESCOLHA DE SOFIA NA COVID-19
  • 26/04/2020 10:57
  • Texto:

    Com a pandemia da COVID-19 e a orientação preventiva do isolamento social, governos temem a sobrecarga e o limite dos seus sistemas de saúde. A projeção encara uma dramática situação: Chegar ao ponto de ser atingida a capacidade máxima de atendimento aos pacientes. Como consequência, a falta de leitos, em especial os de terapia intensiva. Lotação esgotada. Não há vagas. A taxa de ocupação hospitalar atingindo o número máximo suportado e as listas de espera por atendimento. No facebook, é compartilhada uma chocante manchete: “Médico do Rio relata drama de escolher entre pacientes quem terá respirador”. Neste cenário calamitoso, gerador de uma sensação de impotência entre os profissionais de saúde, pode chegar o momento em que terão de fazer uma difícil escolha de forte impacto ético e emocional. Escolher, em uma limitada circunstância de não poderem assistir a todos(as), quem vai ter acesso aos recursos do tratamento disponível. No caso da COVID-19, a cena mostra um momento em que todos os respiradores estão sendo usados. E quando resta um deles e dois doentes graves precisam usá-lo? E agora? Quais critérios e princípios nortearão a decisão? Desdobramentos subjetivos do adoecer em uma extraordinária experiência das práticas médicas. Teste vocacional no cotidiano dos trabalhadores da clínica hospitalar. Uma prova para quem teve a oportunidade de receber uma formação humanística no seu processo de capacitação. No contexto pandêmico atual, tenho ouvido em alguns discursos a referência a uma “escolha de Sofia”. De onde vem tal evocação? Esta lembrança encontra a sua gênese cinematográfica.

    Vamos ao ano de 1982 para rever o filme A ESCOLHA DE SOFIA, baseado no livro de William Styron e dirigido por Alan J. Pakula. Sofia Zawistowski é uma mulher polonesa que experimentou os terrores de ter passado por um campo de concentração nazista. Enviada a Auschwitz, trazia no corpo as marcas do seu calvário: cicatrizes nos pulsos cortados em uma tentativa de suicídio e a inscrição do número 11379 no seu braço. A ideação suicida é por ela subjetivada: “Eu sabia que Cristo me havia tirado sua face de mim e que somente um Jesus que já não se importava comigo poderia matar todas essas pessoas que eu amava e deixar-me viva com minha vergonha. Deus. Então fui a essa igreja e peguei o vidro, ajoelhei-me e cortei os pulsos”. O silêncio divino que atualiza uma das sete palavras de Jesus na cruz: “Deus, por que me abandonastes?”. Na companhia dos filhos Jan, de 10 anos e Eva, Sofia foi prisioneira em um espaço que tinha a palavra exterminação (“die vernichtung”) no núcleo do seu programa político. Na lógica nazista, a solução para o problema dos judeus da Polônia era exterminá-los. Nas estações da sua torturante travessia, Sofia viu a agonia do bloco 25. A narração fílmica desnuda a trágica seleção dos que nele eram aprisionados: “Ali era onde levavam os prisioneiros que haviam sido selecionados para o extermínio. As pessoas ali eram forçadas a ficar de pé durante dias, às vezes. Estavam nus e não tinham água. E suas mãos se estendiam através das grades e choravam, e imploravam”.

    No arianismo exterminador, um programa de germanização (lebensborn) separava alguns garotos da Polônia para serem socializados em chão alemão. Uma voz do movimento de resistência faz a sua apresentação: “...Meninos arrebatados de seus pais poloneses que, a princípio, se acreditava que teriam traços raciais de arianos. Iriam levá-los à Alemanha para serem criados como alemães”. Sofia, na angústia de querer salvar a vida do seu filho, louro e de aparência alemã, apelou para um funcionário nazista: “Envie-o ao Reich para que o criem como um bom alemão”. Na narrativa do filme, em flashback, o pai de Sofia é apresentado como um sujeito sintonizado com os valores e princípios nazistas. Vejamos o que é registrado sobre ele: Bieganski foi “professor de Direito na Universidade de Cracóvia de 1919 a 1939. Conhecido por suas manifestações anti-semíticas. Um importante divulgador da ‘Regra do Banco’. Nos guetos, que tornou ilegal que os estudantes judeus se sentassem no mesmo banco dos poloneses”. Memória paterna de um homem morto pelos nazistas com os quais tinha afinação.

    Sofia, encarcerada, foi forçada a escolher entre os seus dois filhos qual deles ficaria vivo. A tela cinematográfica exibe a tensão e o desespero materno diante da perversa imposição da escolha a ser feita. As duas crianças expressam o sofrimento da dramática circunstância. Entre choros e gritos da mãe e das duas crianças, ela escolhe o filho Jan, salvo para ir com destino a Kinderlager, o campo que concentrava os meninos. Eva, a “filhinha”, foi enviada para o crematório II, lugar onde seria exterminada. Sofia encarou “o trabalho de Deus”, segundo a fala do médico a serviço do nazismo. É a manipulação ideológica da “ciência” em prol da justificativa de práticas eugênicas e racistas. O inflexível carrasco que impôs o “você decide” para Sofia trabalha como um “intelectual orgânico” na prática de uma medicina sob o controle totalitário. A seguir, reproduzo as falas proferidas no doloroso e emocionante momento em que Sofia é torturada pela tirania verbal de um serviçal ditador:

    - Sou polonesa! Nasci na Cracóvia! Não sou judia! Meus filhos tampouco! Não são judeus. São racialmente puros. Sou cristã. Sou uma católica devota.

    - Não é uma comunista? É uma crente?

    - Sim, Senhor. Creio em Cristo.

    - Então acredita em Cristo... o Redentor?

    - Sim!

    - Ele não disse “Que sofram os pequeninos para que venham a mim ?”. Pode ficar com um dos seus filhos.

    - Como assim?

    - Pode ficar com um dos seus filhos. O outro deve ir.

    - Está dizendo que tenho que escolher?

    - É uma polonesa, não uma judia. Isso lhe dá um privilégio, uma escolha.

    - Não posso escolher! Não posso escolher!

    - Cale-se.

    - Não posso escolher!

    - Escolha! Ou mandarei ambos para lá! Tome uma decisão!

    - Não me faça escolher! Não posso!

    - Escolha ou enviarei ambos para lá! Cale-se! Chega! Mandei que se calasse. Escolha!

    - Não me faça escolher! Não posso!

    - Enviarei ambos para lá!

    - Não posso escolher!

    - Levem esses meninos! Rápido!

    - Leve a minha filhinha! Leve o meu bebê! Leve a minha filhinha!



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