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PPGS013 - TEORIA SOCIOLÓGICA I - Turma: 01 (2020.1)

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  • COM DUBY E BERGMAN, FICO EM CASA
  • 11/05/2020 09:02
  • Texto:

    Medos medievais, medos de hoje: um paralelo legítimo?”. Esta pergunta introduz o livro “Ano 1000, Ano 2000: Na Pista de Nossos Medos”, de Georges Duby. Medievalismos marcam presença na era da informação. Seguem as inquietudes seculares. A miséria, o outro, as epidemias, a violência e o além amedrontam os homens ao longo do processo histórico. O medo, em seus aspectos sociais e históricos, é alvo das ciências humanas e sociais. Duby escreve para quem, em 2020, está em isolamento social e teme ser contaminado pelo novo coronavírus. Na atual pandemia, os mortos protagonizam na sociedade do espetáculo. A solidão dos moribundos. Caixões de defunto são exibidos diariamente nos canais televisivos. Em 1410 e hoje, covas comuns recebem muitos cadáveres. “Nós que aqui estamos, por vós esperamos”, é uma mensagem cemiterial. O número de óbitos das últimas 24 horas é divulgado nos jornais diários. 730 pessoas, no Brasil, na divulgação do dia 9 de maio. Em luto oficial, o país atinge a quantidade de 10.627 vidas perdidas. A cara da morte está escandalosamente viva. Das páginas do texto de Duby vou encontrá-la, temida, na linguagem cinematográfica. Ela, no seu figurino preto, diz: “Está com medo”. O destinatário desta mensagem é o cavaleiro Antonius Block. Em resposta, ele confirma: “Estou com medo de morrer”. Em um jogo de xadrez, dialoga com a indesejada e mortífera figura. Esta, vocaliza ter todos(as) sob o seu domínio: “Nada me escapa. Ninguém me escapa”. Cenas montadas pela mente brilhante de Ingmar Bergman. Na complexidade do contexto pandêmico atual, promovo um encontro entre ciência, literatura e arte. Campos pensantes no desvelamento das dramáticas situações experimentadas pelos que são atingidos pela doença global. Na companhia das letras, seguem duas referências bibliográficas clássicas para a compreensão de trágicos cenários humanos: “História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias”, de Philippe Ariès e “Um Diário do Ano da Peste”, de Daniel Defoe.

    No filme O SÉTIMO SELO (1956), o mestre Bergman dá uma aula artística sobre o clássico e ancestral medo da morte. Na tela, em uma das cenas, na taverna, “todos estão mortos de medo”. No contexto pestilento da “morte negra”, o texto fílmico apresenta imagens de um imaginário fertilizado por cruzes, caveiras, demônios e anjos destrutivos. Símbolos e iluminuras cristãs dos tempos medievais lidos pelas lentes do cineasta pensante. Narrativa histórica na qual o diabo, com seus fantasmas, culpas e assombrações, marca presença em um cotidiano pestilento. Em vôos fantasiosos e metafóricos, a peste é atingida por práticas discursivas e produções de sentido reforçadoras da visão da doença como uma construção social. Para além dos micro-organismos, vírus e bactérias, outros elementos são apontados como causas das patologias ceifadoras de vidas. Os indivíduos “anormais”, “desviantes” e “perigosos” sentiram nas suas peles o significado de serem estigmatizados. Condenados, foram tratados como bodes expiatórios em particulares experiências patológicas. A lepra bíblica e a AIDS trouxeram os leprosos impuros e os “aidéticos” da “peste gay”, vistos como culpados e responsáveis pelas suas enfermidades. Nos seus comportamentos danados, imorais, de outsiders, eram responsabilizados pelos seus adoecimentos. As doenças têm as suas histórias sociais.

    O SÉTIMO SELO apresenta evocações apocalípticas do juízo final. Na sua representação visual, o pintor explica para o escudeiro Jons os significados da pintura que está produzindo em uma parede. É o retrato imagético da “dança da morte”, a que baila com todos(as). No seu discurso, fala da ótica do artista antenado com os sinais de um tempo empestado por uma mortal enfermidade. Em preto e branco, pinta um universo povoado de fantasias explicativas das causas dos sofrimentos experimentados pelos seus contemporâneos. Sob o império do pensamento eclesiástico, o discurso dominante é o religioso. O conceito de pecado ganha centralidade e os pecadores são culpabilizados. A partir das imagens por ele pintadas, descreve o estado físico e mental dos “pecaminosos” doentes da sua época: “Veja como as pessoas ficam com o pescoço inchado. O corpo fica todo contraído, e os membros amolecidos. A pessoa tenta se livrar do inchaço. Morde as mãos e arranca as veias com as unhas. Seus gritos são ouvidos de longe. ...É incrível, mas as pessoas acham que a peste é um castigo de Deus. E aquelas que se consideram escravas do pecado se flagelam pela glória de Deus. ...É horrível. Alguns se escondem para não vê-las passar”.

    Ilustração dantesca e infernal, extraída da obra “A Divina Comédia”, de Dante, é exibida por Duby. Corpos sofredores, em páginas literárias, embasam a exposição do historiador: “Vi dois que se sentavam entreapoiados como uma panela contra a outra, colocadas sobre a brasa, da cabeça aos pés cobertos de crostas ... como cada qual aumentava suas feridas com as unhas, pelo grande furor com que a sua pele comichava impiedosamente”. Canto literário de ais dolorosos. No século XV, em exposição, eram exibidas as pestilentas flechadas cristãs pintadas por artistas tradutores do imaginário temporal em que viviam. Duby expõe: “Os pintores representavam os surtos da peste por uma chuva de flechas mortíferas. ...Cristo envia do alto do céu as flechas da peste que atingem precisamente os corpos nos locais onde aparecem os bubões”. É a mentalidade de uma época dominada pela teologia cristã e traduzida por Bergman em um documento fílmico. E assim tem caminhado a humanidade. Albert Camus captou a lição da ciência da história. No final de “A Peste”, escreve com olhos de águia: “O bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada. E sabia, também, que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz”. E para a nossa infelicidade, a COVID-19 apareceu. Assim vivemos agora.



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