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PPGS013 - TEORIA SOCIOLÓGICA I - Turma: 01 (2020.1)

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  • COM INGMAR E O SILÊNCIO DE DEUS, FICO EM CASA
  • 19/05/2020 22:56
  • Texto:

    O acesso aos mais variados temas através da linguagem cinematográfica, é um caminho metodológico de inspiração antropológica. Nesta trilha, o texto literário também é uma fonte condutora aos assuntos emergentes e relevantes dos nossos cotidianos. As questões religiosas participam dos nossos shows diários. A sociedade do espetáculo encontra presbíteros nas redes sociais. Missas remotas transmitidas via WhatsApp. Mercado religioso online. Existe um Deus criador? Esta é uma eterna questão. E o diálogo entre fé e razão? Deus está morto? É ocasião para um encontro dialogal entre Friedrich Nietzsche e Ingmar Bergman. E seguem os cursos de patrística e escolástica. Teólogos, filósofos, cineastas e cientistas não param de questionar. Em meio a tantos questionamentos, a conjugação do verbo duvidar. Somos multidimensionais e a dimensão religiosa é exercitada por um significativo número de indivíduos. Muitos filmes tratam das experiências humanas no diverso e complexo campo da religião. As indagações antes feitas são veiculadas pela voz desassossegada de alguns personagens fílmicos. Os exemplos são múltiplos. Os olhares cinematográficos sobre os desdobramentos subjetivos do ser religioso apresentam as suas especificidades. As visões dos cineastas exibem mais uma lente a partir da qual podemos pensar sobre as produções de sentido e práticas discursivas religiosas.

    Pensadores afinados com o pensamento complexo rompem as barreiras disciplinares e encontram no cinema um interlocutor com o qual podem dialogar e atingirem, juntos, o objetivo de ampliar as leituras que fazem sobre as várias dimensões da vida humana. Edgar Morin é referência antropossociológica do trânsito entre ciência e arte. No espaço visual das projeções e identificações cinematográficas, ouvimos emissões vocais tradutoras das nossas inquietações relacionadas, em particular, com o imaginário religioso. Partindo de um quarteto fílmico de Ingmar Bergman, cito quatro cenários nos quais ganham expressividade as reflexões e interrogações de homens atormentados por questões existenciais referentes às relações entre a divindade cristã e seus seguidores. Com densidade e profundidade, Bergman faz um mergulho em nossas inquietudes e incertezas espirituais. Exercícios e malhação espirituais em desconcertantes imagens. Do cristão leigo ao sacerdotal das experiências dos padres, freiras e pastores(as), todos(as) duvidam e vacilam nas suas vivências com as potências divinas. Ocupam as telas vozes adultas, cerebrais, consequentes e incômodas. Criaturas agoniadas, desesperadas, entediadas e questionadoras, subjetivam as suas aflições na busca de respostas em situações de tormenta nas suas vidas. Segue o conjunto de cenas com a marca de um cineasta pensador. No movimento das câmeras, a exibição dos expressivos rostos de quem é humano demais:

    CENA 1: Em LUZ DE INVERNO (1962), a narrativa fílmica focaliza o drama vivido pelo Pastor Ericsson diante da distância de um Deus silencioso. Impotência, infelicidade e confusão são os sentimentos por ele explicitados no exercício de um sacerdócio marcado por graves problematizações. Na sua ansiedade, explicita o seu abandono pela divindade a quem serve no seu trabalho pastoral. Com franqueza, dentro do espaço eclesiástico, ele desabafa para um interlocutor com ideação suicida. Parte substantiva do diálogo entre os dois é tomada pelas indagações de um servo cristão em uma crise de fé. Celebrando o culto em igrejas esvaziadas, Ericsson é atormentado pelo silêncio divino. No seguinte fragmento discursivo, ele exterioriza o seu desamparo:

    “Tinha fé numa imagem improvável e particular de um deus paterno. Um deus que amava a humanidade, mas a mim acima de tudo. ...Percebe que erro monstruoso eu cometi? Um sacerdote ignorante, infeliz e ansioso. Fazia minhas preces para um deus-eco que me dava respostas agradáveis e bênçãos tranquilizadoras. Toda vez que confrontava Deus com questões reais, percebia que ele se transformava em algo feio e revoltante. Um Deus-aranha, um monstro. Então tentei colocá-lo à parte da vida mantendo a imagem que tenho dele só para mim. ...Se Deus não existe, isso realmente faria alguma diferença? A vida se tornaria compreensível. Seria um alívio. E a morte seria a extinção da vida. O fim do corpo e do espírito. Crueldade, solidão e medo, todas estas coisas seriam claras e transparentes. O sofrimento é incompreensível, portanto não exige explicação. Não existe um criador. Nenhum provedor da vida. Nenhum desígnio. ...Deus por que me abandonastes?”

    CENA 2) Em GRITOS E SUSSURROS (1972), Ingmar Bergman dirige a cena na qual um sacerdote cristão é chamado para cumprir parte dos rituais religiosos de um momento fúnebre. Ajoelhado ao lado do leito da mulher morta e na presença das suas irmãs, ele profere um discurso revelador de uma visão nada leve sobre a passagem dos homens pela terra. Em uma situação de luto, uma mensagem desalentadora sai da boca de um pastor no posicionamento por ele emitido. Em uma circunstância de perda, palavras nada edulcoradas são ditas na frente das enlutadas mulheres. Estas ouviam a exposição de um discurso orante e cinzento em relação às condições existenciais humanas. Ao orar pedindo a intercessão da morta, o pastor diz: “A fé dela era mais forte que a minha”. A crença pastoral é captada em suas fragilidades e vacilações. Proferidas em um contexto de velório, as subjetivações do clérigo revelam o desassossego sacerdotal diante do calvário das dúvidas, incertezas e dores terrenas. Uma fala desconfortável para quem busca consolo em momentos dolorosos. Bergman, em suas cinematográficas provocações, revela um especial talento nos mergulhos que dá nos mares bravios da teatralizada alma humana. A eloquente voz seguinte atesta a acuidade compreensiva do cineasta:

    “Agnes, querida filha, ouça, por favor. Ouça o que tenho a lhe dizer agora. Reze por nós que fomos deixados na escuridão, deixados para trás nesta terra miserável com o céu acima de nós, impiedoso e vazio. Deposite o seu fardo aos pés de Deus, todo o seu sofrimento e peça a ele que nos perdoe. Peça a ele que nos liberte da nossa ansiedade e do nosso cansaço das nossas apreensões e medos. Peça que ele dê sentido e significado às nossas vidas. Agnes, você que suportou angústia e sofrimento por tanto tempo é, com certeza, digna de defender a nossa causa”.

    CENA 3) Em A FONTE DA DONZELA (1959), evoco o imaginário infanto-juvenil da clássica história da chapeuzinho vermelho. Pai cristão mata os assassinos estupradores da sua jovem filha. Personagem multifacetado, é o retrato das contradições dos seres humanos. Rezar e matar formam dupla verbal conjugada pelas criaturas demasiado humanas. Logo após ter encontrado o corpo da sua cria, em dilacerante impacto de vê-la morta na floresta, dirige o seu clamoroso lamento para a sua divindade. Atirado ao chão bruto, em atitude orante evocativa do Jó bíblico, ele questiona, enfático, a um Deus permissivo e emite uma mensagem na qual revela o seu limite compreensivo relacionado aos desígnios divinos. Do âmago da sua dor paternal, subjetiva a ambiguidade dos seus sentimentos e emoções relacionadas à permissão divina geradora da sua sofrida perda afetiva. Na exteriorização do seu luto, um penitente servo ora ao incompreendido ser a quem faz uma promessa:

    “O Senhor viu. O Senhor viu. A morte de uma criança inocente e a minha vingança. O Senhor me permitiu! Não entendo você! Não entendo você! No entanto, agora eu imploro o seu perdão. Não sei como recuperar a paz sozinho. Não conheço outro modo de viver. Eu prometo, Senhor, aqui, perante ao corpo de minha filha eu lhe prometo que construirei uma igreja, como penitência pelo meu pecado. Ela será construída aqui. De pedra firme e com minhas mãos!”.

    CENA 4: Em O SÉTIMO SELO (1956), no medroso contexto da Peste, o cavaleiro medieval Antonius Block encontra a morte e joga com ela uma partida de xadrez. Todos estão condenados a com ela dançar e jogar quando chegar o momento de encontrá-la. Aflito e sentindo-se humilhado, Antonius, nas suas tentativas de compreensão dos mistérios da divindade cristã e em face do Cristo crucificado confessa a sua experiência de crente aprisionado e interrogador. Ao retomar a ideia do silêncio de Deus, afirma: “A fé é uma aflição dolorosa. É como amar alguém que está no escuro e não sai quando chama”. Onde encontrar o Pastor que silenciou para as suas ovelhas? Morreu? Foi uma ilusão? De dentro dos seus breus existenciais, em tom confessional, Antonius cobra uma manifestação da voz divina:

    “...É tão inconcebível tentar compreender Deus? Por que ele se esconde em promessas e milagres que não vemos? Como podemos ter fé se não temos fé em nós mesmos? O que acontecerá com aqueles que não querem ter fé ou não têm? Por que não posso tirá-lo de dentro de mim? Por que ele vive em mim de uma forma humilhante apesar de amaldiçoá-lo e tentar tirá-lo do meu coração? Por que , apesar de ele ser uma falsa realidade eu não consigo ficar livre? Você me ouviu?”



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