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PPGS013 - TEORIA SOCIOLÓGICA I - Turma: 01 (2020.1)

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  • EM CASA, FICO COM OS "OLHOS NUS" DE MIA COUTO
  • 03/06/2020 10:15
  • Texto:

    No vasto mundo da literatura não param as descobertas dos escritores com os quais ainda não tínhamos marcado nenhum encontro. Companheiros letrados a entrarem nos nossos shows existenciais. Em recente aventura literária, fui remetido às letras de Mia Couto. O responsável por tal envio foi Chico Buarque. Descobri o conto “Olhos Nus: Olhos”, escrito por Mia e livremente inspirado na canção “Olhos nos Olhos”, de Chico Buarque. Lembro de um outro poema sonoro: “O olhar de quem ama diz o que o coração não quer...”. Striptease ocular. Olhares desnudados, reveladores e loquazes. Da narrativa cancionista para o intracódigo literário, experimentei uma prazerosa transposição entre as duas linguagens. Percurso imaginativo exemplificador de uma tradução intersemiótica entre os textos musical e literário.

    Em 1976, viajei na audição sonora de “Olhos nos Olhos”. Naquele ano, Maria Bethânia, no LP “Pássaro Proibido”; Agnaldo Timóteo, no disco “Perdido na Noite” e o próprio Chico, no álbum “Meus Caros Amigos”, apresentaram as suas gravações para a focalizada composição buarquiana. Esta fez parte da trilha sonora da telenovela “Duas Vidas”, exibida pela Rede Globo entre os anos de 1976 e 1977. Um caso de disjunção amorosa recebeu a lírica abordagem sonora do compositor. Chico amoroso e amante. Nas partituras cancionistas, os desdobramentos subjetivos da separação entre amantes e as sequelas resultantes. Drama sentimental a receber tratamento cinematográfico pelas lentes de Karim Ainöuz no seu filme “O Abismo Prateado” (2013). Esta obra partiu da recriação da narrativa cancionista de “Olhos nos Olhos”, concebida pela ótica do cineasta e com o capital de recursos técnico-estéticos à sua disposição. Movimento de imagens multicores para a expressão visual dos ais gozosos e dolorosos das palavras. Segundo a pesquisadora Camila da Silva Sousa, em análise semiótica do trânsito artístico percorrido por Ainöuz, a protagonista da sua obra fílmica vivencia um trio de momentos resultantes da sua ruptura afetiva: “o abandono, a aflição e a aceitação”. Frames de cenas tradutoras dos sentimentos e emoções de um “eu-lírico feminino” abalado pela separação de um certo alguém ou um pedaço de si. Uma especial sensibilidade para falar das questões femininas é marca identitária do perfil composicional de Chico Buarque. Homem de “alma feminina”? Representante  das novas masculinidades, ele canta um plural universo de fêmeas. São Angélicas, Bárbaras, Ritas, Cecílias, Genis, Beatrizes, Carolinas e Anas dos brasis e de Atenas.

    No país da delicadeza perdida, a leitura de um texto exaltação da língua portuguesa encerra uma dimensão política. Claridade nos breus. Gente arteira fazendo a diferença nas suas criativas, qualitativas e belas criações. Oásis cultural no contexto da aridez de um quadro social de barbaridades. Artistas e escritores éticos, convictos e responsáveis atuam como faróis em tempos turbulentos e decepcionados. A gestação de uma obra literária, em particular, gera afetações, disparos e variados impactos. Dentre estes, trazer alento, animação e toques esperançosos. Isto é um ato político. Ao partir da poesia sonora de Chico para a concepção de um texto literário sobre a canção selecionada, Mia Couto pare uma cria textual diferente da matriz original. Diferença que nega, conserva e eleva dialeticamente o conteúdo da fonte de partida. O resultado são páginas que seduzem o leitor em sua iniciação no universo imaginativo de mais um escritor a ter como companheiro. Foi um prazer conhecê-lo.

    Machado de Assis, Fernando Pessoa, Clarice Lispector, Mia Couto e tantos outros escritores são pensadores que expõem seus pensamentos guiados por intracódigos particulares. O sociólogo encontra neles mais aliados nas suas tentativas de compreender e interpretar as relações sociais. Prismas diversos olhando as questões que desassossegam as pessoas no contexto social em que vivem. Tive um professor de ciência política que levava Shakespeare para as suas aulas. Que tal a promoção de um diálogo entre o gerador de Hamlet e Maquiavel com o seu “Príncipe”? Ambos iluminam a resposta da seguinte pergunta: Do que os homens são capazes para atingirem o poder e continuarem nele se perpetuando? Os bastidores dos palácios foram por eles percorridos, desvendados e interpretados pelas diferentes escritas de cada um. Cabe aqui a proposta de ruptura das barreiras disciplinares que separam os que apresentam potencial para dialogarem entre si. Eça de Queiroz com o “primo Basílio” e o “padre Amaro” renderiam substantivas citações em uma exposição sobre a sociologia moral de Émile Durkheim. Letras sapienciais em seus profundos mergulhos nas ambiguidades humanas. Lições intelectuais citadas em calendários. Em uma pagela franciscana, o sábio William Shakespeare enxerga a faceta não vilã do bicho racional humano: “Nenhum ser existe sobre a terra, por mais vil que seja, que não faça à terra algum bem”.

    Lendo a grafia do português de Moçambique, reflito sobre os desassossegos existenciais de quem experimentou o fim de uma relação amorosa. Na vivência de alguns é observada a subjetivação de dores semelhantes às de um luto. “Ó pedaço sem mim...”, na escrita textual, traduz os ais dolorosos do enlutado. Em certos casos, os gritos e sussurros da criatura abandonada parecem equivaler à experiência de arrumar o quarto do filho que já morreu. A saudade entra em cena. A mortalha do amor acinzenta a existência. Para além da esfera econômica, a dimensão afetiva grita pela satisfação das suas necessidades. OLHOS NUS: OLHOS é uma densa fonte de prazer literário. Fiz diversas paradas reflexivas para sorver a mensagem de uma série dos seus fragmentos. São trechos que a seguir compartilho. Não tinha como por eles passar de modo apressado. Lia e estacionava para refletir sobre os seguintes toques do pensamento literário de Mia Couto. Convido para uma pessoal navegação nas suas páginas:

    • A felicidade não tem alfabeto
    • A paixão é um fio de chuva em vidro de janela
    • ...Quanto tempo vivemos sem saber viver?
    • A vida apenas tem encontros; tudo o resto são descoincidências
    • Os amigos são a pior maravilha do mundo
    • É tão fácil ficar velho... . Nem sequer é preciso tempo nem idade. Basta não ter vontade de acordar
    • O ciúme, todos sabemos, é um assegurado afrodisíaco
    • O riso reforça os laços tribais dos caçadores
    • Afinal, o que ela sempre reprovou foi o seu crescer, a sua conversão em pessoa com destino próprio. A mãe nunca o deu à luz
    • Aprendemos a amar no amor que dedicamos aos filhos. Amar quem a vida nos deu, sabendo que a mesma vida nos vai tirar. Saber que se vai ficar sem o outro e que não iremos perder. Não perdemos nunca os que amamos. O amor está para além dessa contabilidade
    • O passado é mentira. Metade é feita de coisas não passadas. A outra metade é feita de coisas que nunca mais passarão
    • Por um simples gargalo de garrafa podem escoar rios de angústias. Há quem busque na bebida ser um outro
    • O beijo limpa as sujeiras da vida
    • De que vale uma janela se nela não cruzamos adeuses?
    • Morrer de ciúmes é demasiado solitário. E ela tem a canção como companhia, é a única amiga que lhe resta
    • O nome é uma luz que um coração acende
    • Amar é um verbo sem passado. Uma vez tendo amado nunca mais se deixa de amar
    • ...Que não existe o ter amado, nem o ter vivido. Amar e viver são verbos sem pretérito
    • Talvez ela mesma se tenha convertido em poeira, talvez seja essa a razão porque perdeu visibilidade perante o espelho
    • A angústia basta para a sufocar sob o peso de uma enfartada alma
    • ...Entendeu que a roupa não era o mais pessoal dos objectos. Era nos livros onde ele mais tinha vivido, onde deixara o olhar enrolado, os dedos passeados, a alma gravada
    • Ela teria que nascer de si mesma, superar a cinza, rasgar na parede da angústia a janela de um novo dia
    • ...Tinha pressa, como só pode ter quem se esqueceu de viver. Por mais breve que seja esse esquecimento ele dura sempre demasiado


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