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PPGS013 - TEORIA SOCIOLÓGICA I - Turma: 01 (2020.1)

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  • DURKHEIM, WEBER E MARX ASSISTEM BACURAU (2)
  • 13/09/2020 20:50
  • Texto:

    "Uma alegoria política eletrizante". Comentário elogioso do "The New York Times" ao filme BACURAU, reproduzido no cartaz do DVD da mencionada obra cinematográfica. Imagens alegóricas evocativas de cenários dos nossos brasis. O descaso com a educação recebe tratamento visual no texto fílmico focalizado. Logo nas primeiras cenas, na beira da estrada que leva à cidade do Oeste pernambucano, a câmera focaliza as ruínas daquela que já foi a Escola Municipal Silvino Adonias Bezerra. Os escombros e os restos do que sobrou de um ex-colégio público. Descuido dos gestores e políticos que, nas campanhas eleitorais prometem priorizar a educação quando chegarem ao poder. Uma chocante imagem da desvalorização do ensino e dos estudos, em especial da leitura, é a cena na qual Tony Jr., prefeito candidato à reeleição, vai a Bacurau para fazer campanha eleitoral e aproveita a ocasião para levar livros para a comunidade. Sob o seu comando, um caminhão despeja uma grande quantidade deles no chão. É como se estivesse despejando lixo em um aterro sanitário. E Tony Jr. pede que o despejo seja filmado já que, segundo ele, vai servir ao lugar "que tem a melhor biblioteca da região". Por outro lado, BACURAU exalta a figura do educador através da liderança comunitária do professor Plinio. Personalidade de destaque no cenário local, dá aulas para crianças e fica embaraçado quando não consegue encontrar Bacurau no mapa digital após ela ter sido deletada do mesmo. Filho da matriarca Carmelita, falecida aos 94 anos e referência feminina na vida da comunidade, Plinio marca presença nos movimentos coletivos e participa das decisões sobre as questões relevantes e emergentes da vida local. Voz ativa e respeitada, na entrega dos donativos trazidos por Tony Jr., provoca risos na sua plateia decepcionada e desacreditada dos políticos enganadores e antiéticos. Estes, são alvo da chacota de quem cansou de ser ludibriado por promessas não cumpridas. Com a palavra, Plinio, o destacado docente, em reação ao "presente de grego" dado pelo demagogo gestor da prefeitura: "Olha, gente. Esses mantimentos já passaram pela triagem, viu? E alguns estavam até com o prazo de validade vencido. Alguns com até seis meses além do prazo. Nós não jogamos esses mantimentos fora. Quem quiser arriscar, eu recomendo cuidado, tá? Tony Jr. também doou mil livros para a comunidade. A gente, como sempre vai usar os que tiverem proveito. Depois a gente escolhe isso junto". Esta parte final do seu recado colheu significativas risadas. Rir para não chorar. Tragicomédia resultante da ausência de um Estado de bem estar social.

    Quando o Estado falta, a sua ausência demanda pela ocupação do espaço vago pela lacuna das suas políticas. Bacurau é uma cidade largada pelo poder público. Saúde, educação e segurança locais carregam a marca da precariedade. Inseguros, os seus habitantes ficam vulneráveis no enfrentamento dos ataques a eles dirigidos. Não há policiamento. O sinal da presença policial é um carro abandonado por policiais que por lá estiveram e que foi largado crivado por marcas de balas. É neste contexto de vácuo estatal que aparece um protetor, uma espécie de "salvador da pátria" relegada pelo abandono das autoridades públicas. Quem é a figura a quem creditam a esperança de salvá-los de uma situação de terror e medo diante da invasão dos forasteiros made in U.S.A? As invasões bárbaras vão contar com um oponente de peso: Lunga. Fugitivo das forças repressoras da ordem, estava sendo procurado pelos "donos" do poder regional. Estavam pagando uma recompensa pela sua cabeça. "Não contem comigo para entregar Lunga", exclama Teresa após ver a imagem do foragido ser exposta na tela televisiva do caminhão em que era conduzida por Erivaldo. Este, reafirma a posição da sua companheira de transporte: "Nem comigo". Um detalhe curioso: Lunga, cabra da peste, danado, valente, temido, era tratado no feminino. "Ela", a "cabeça dela". Tratamento dado a uma personalidade valorizada pelo povo de Bacurau. Alguém a quem recorrer nos momentos de aperto. É em relação a ele/ela que Damiano usa o seguinte dito popular quando Acácio diz que vai pedir a ajuda de Lunga: "O homem vale mais pelo mal do que pelo bem que pode fazer". Em seu esconderijo, no alto de uma barragem seca, na companhia de dois parceiros, recebe o aval de que é bem-vindo em Bacurau: "O pessoal lá sabe o que vocês fazem por eles. Vocês são importantes". Fala de Acácio confirmada pela calorosa recepção que Lunga recebe quando reaparece em Bacurau. Recebido com aplausos e assobios, entra em cena com um figurino estranho e uma peruca longa. As pessoas que lá estavam em um encontro noturno, assistindo a um vídeo dos crimes de "Pacote", param a exibição e é anunciado, por Acácio, o retorno de Lunga. Uma entrada triunfal a despertar o seguinte comentário de uma idosa: "Que roupa é essa, menino?" Alguém exclama: "Tá bonita!". Por reunir marcadores identitários singulares e personalizados, Lunga é criatura com potencialidades para tornar-se lendária pelos seus feitos criminosos e por ter um estilo pessoal, incomum. No seu esconderijo chegou a expressar algo revelador da sua presença multifacetada e diferente: "Estamos aqui feito a bicha do Che Guevara". Guerrilheiro do sertão, vem socorrer a largada e desprotegida comunidade de Bacurau contra os gringos exterminadores. Mesmo com um currículo de crimes na sua trajetória, Lunga tem a admiração e o aceite comunitário. Com o seu carisma, é ele quem vai preencher a lacuna deixada pelo Estado omisso na garantia de oferecer segurança a uma Bacurau tirada do mapa e desassistida. A importância de Lunga poderia ter sido dada por outro caminho. Ao invés das balas e outros recursos armamentistas, lápis e caneta seriam os instrumentos usados por um potencial escritor, caso ele não tivesse mudado a rota da sua existência. O professor Plinio reconhece o valor de quem não deu prosseguimento ao seu talento para a escrita: “Você escreve muito bem, Lunga. Não devia ter parado”.

    "Um canto de amor ao Nordeste". Comentário UOL registrado na capa do DVD do filme BACURAU. Um microcosmo imagético da região brasileira e suas singularidades. Terra de contrastes, das mortes e vidas severinas. Secas existenciais e fartura cultural. BACURAU revive, "daqui a alguns anos", a clássica e secular "indústria da seca". Da secura de 1915 à globalizada era digital, os drones sentinelas estão no ar e o caminhão-pipa do Erivaldo segue carregando água potável para abastecer a pernambucana Bacurau. No trajeto, é alvejado por balas que perfuram o veículo condutor do precioso líquido e este vai sendo desperdiçado. Sertão das tristes partidas, do chão bruto, dos patativas, suassunas, gonzagas e da matriarca Carmelita. E no seu velório, ela é exaltada por Plinio, o filho docente. A velha, morta aos 94 anos, é referência e motivo de orgulho para os seus descendentes. Muita história para contar. Fotografia para figurar no Museu Histórico de Bacurau. Símbolo resistente da brava gente, tal como o brabo pássaro bacurau. Na trajetória de Carmelita, a síntese de um povo lutador e migrante. Vozes áridas e excluídas, ganham tradução cinematográfica. Discurso visual desvendador. Arte a serviço da indignação e da mudança. Écran politizado e profético no anúncio e na denúncia. O enterro de Carmelita, nos moldes tradicionais, em casa, foi trilhado por Sérgio Ricardo. Nome de cineasta poético no chão do mundo vasto pisado por Deus e o Diabo na terra do sol, das carmelitas e palmares. Histórias que se contam. Pé na estrada. Bacurau, na fala filial, discursa sobre o seu referencial materno: "Carmelita teve filho, teve neto, neta, bisneto, afilhado. Teve muito amigo. Na família, teve de pedreiro a cientista. Tem professor, tem médico. Tem arquiteto, michê e puta. Mas ladrão, ela não gerou nenhum. Tem gente em São Paulo, Europa, Estados Unidos. Tem gente na Bahia, Minas Gerais. E muita gente não pôde vir aqui hoje prestar homenagem a ela por causa do problema da nossa região. Mas eles mandaram muita ajuda. Muita ajuda para Bacurau. E isso é prova de que Carmelita e Bacurau estão em todos eles".

    BACURAU é uma obra crítica, indignada e que consegue a empatia de um público também crítico e indignado. A tela oferece o seu espetáculo, mas a observação da resposta de quem assiste, a reação da plateia, merece registro. Reside aqui um dos diferenciais de estar dentro de uma sala escura, na companhia de um conjunto de outros espectadores. BACURAU foi lançado em uma conjuntura política de decepção relacionada ao governo brasileiro. 2019 é um ano em que são observados retrocessos no tocante às conquistas sociais da sociedade civil brasileira. O desgaste dos políticos comprometidos com os interesses das classes dominantes e a forma desgastada de promoverem acordos e alianças gera uma indignação e um desejo de dar um basta na politicalha obsoleta, paridora de atraso e reprodutora das abismais desigualdades sociais. Para os sujeitos críticos, indignados e interessados em mudanças estruturais, assistir BACURAU é alentador. É o encontro com os cineastas pensadores e identificados com projetos inclusivos e formadores de consciências livres e críticas. Produção artística organicamente ligada aos ideais de justiça social e ruptura com olhares colonizadores. Assisti BACURAU em um centro cultural público, preferencialmente voltado para exibições de "filmes de arte". Sala lotada. A cada cena em que os dominados reagiam e derrotavam a arrogância etnocêntrica dos dominadores, o público emitia aplausos, assobios e gritos. Na tela, o espelho no qual se viam representados pelos personagens que, em comunidade, venciam armados os forasteiros invasores com o idioma da globalização. Dentre as várias cenas em que ocorrem as identificações discursivas entre as imagens telânicas e as projeções políticas dos que assistem BACURAU, seleciono as sequências finais nas quais o povo de Bacurau ritualiza o fim de Tony Jr. O epílogo que dá um basta, um não suporto mais a politiquice, ou seja, a negação da nobreza do fazer política. O DJ Urso fala em nome de quem gostaria de dizer o mesmo com os Tony's Juniores da vida pública brasileira: "Parte agora o prefeito do município de Serra Verde, Sr. Tony Jr., em direção à caatinga de Bacurau. Que ele encontre lá a paz interior que tanto necessita, em meio aos facheiros, gogó, mandacaru, favela, xique-xique. Essas plantas que furam, que se abracem gostosamente com seu corpo. Pai da mentira, angu-de-caroço. Causou muita dor e sofrimento para a nossa comunidade. Nesse dia, a gente de Bacurau dá adeus a esse demônio. Que ele não retorne nunca mais para essa terra aqui. E que esse burrinho que tem essa missão infeliz, volte em paz e tranquilidade. Desalmado, filho de uma rapariga. Vá embora, meu filho".

    As boas vindas da viola de Carranca à dupla de sulistas motoqueiros, evoca as "vozes da seca" cantadas por Luiz Gonzaga. O violeiro cantador de Bacurau. Tons instrumentais trilham as dores e as delícias do ser sertanejo e interiorano. Na sua gaiatice, com arte popular, toca na arrogância do branco, o procedente do Brasil "rico", "locomotiva" dos outros brasis periféricos. Brasileiros orgulhosos de suas ancestralidades europeias. Ignorâncias geográficas advindas dos vários pontos cardeais do continental território brasileiro. Nordeste desconhecido na sua complexidade. Já aconteceu de terem feito um mapa sem o esquecido e ignorado Piauí. A pobreza é uma, dentre as várias caras da nordestinidade. A imagem de um pedinte com o chapéu estendido, à espera de uma esmola, não dá conta da totalidade regional. Bélgica e África nordestinas. Carranca, no contexto dos ais dolorosos do chão em que habita, não perde o senso de humor e emite um discurso crítico-musical: "Esse povo do sudeste não dorme e nem sai no sol/ Aprenderam a pescar peixe/ Sem precisar de anzol/ Se acham melhor que os outro/ Mas ainda não entenderam/ Que São Paulo é um paiol". A "turista" ouve e quer dar uns trocados. Carranca não sai do tom e reage musicalmente: "Não quero seu dinheiro, moça/ Eu tô aqui só de gaiato". Querelas regionais à parte, os Carrancas nordestinos exibem a "estranha mania de ter fé na vida".

    “Bacurau 17 Km. Se for, vá na paz”. O que há de pacífico em Bacurau? Um lugar original, com características singulares em relação às imagens tradicionalmente ligadas às cidades sertanejas e interioranas. Seus habitantes mostram o exercício de uma solidariedade, em especial no enfrentamento dos seus inimigos estrangeiros. Sem policiamento civil ou militar, não é nenhum Roque Santeiro, ou seja, um espaço citadino no qual a economia orbita em torno da devoção religiosa a um santo padroeiro. Ao invés de efervescência religiosa, encontramos a igreja sem funcionamento, pois “virou depósito”. A livre expressão sexual tem voz e vez através de personagens destacados. As sexualidades, nas suas siglas coloridas, e a prostituição, estão representadas por figuras importantes na vida comunitária. As putas da Madame participam dos acontecimentos locais sem serem discriminadas ou excluídas por conta do ofício profissional que exercem. Vozes ativas nos momentos de reação coletiva, Domingas, Lunga, Darlene e Sandra, representantes da diversidade nas formas de ser, não são banidos(as) da convivência social pelo fato de terem marcadores identitários que, em outros espaços geográficos, seriam vistos e tratados como anormais, outsiders e desviantes. Respeitando as individualidades, Bacurau, no seu céu e inferno, é território de explosão das ambivalências humanas. A sua gente, consciente da necessidade de uma resistência em conjunto, mostra a força de uma resposta organizada frente aos forasteiros.

    O sombrio, a melancolia, a ameaça e o sinistro, invasores de Bacurau, ganham tradução sonora. Zumbidos eletrônicos, hip-hop e palmas de capoeira sonorizam as emoções e sentimentos subjetivos no lugar invadido pelas violentas forças estrangeiras. A morte e os seus caixões de defunto são trilhados pelo “Réquiem para Matraga”, de Geraldo Vandré. Imagens fúnebres evocativas da sociologia visual de “Terra”, na fotografia de Sebastião Salgado. Na luta contra a concentração fundiária, os movimentos sociais sofrem baixas e os seus mortos são encaixotados. Os severinos finalmente vão ter um terreno para deitarem os seus corpos. O fotógrafo documenta. Nomes enterrados nas urnas funerárias para todas as idades e cores. Inumeráveis. Registro fotográfico eloquente das violências nos bacurais brasileiros. As caras vivas da morte civil nas cidadanias negadas. Western futurista manchado de sangue. Cinema na música de Sérgio Ricardo, acompanhante do ritual para enterrar a matriarca Carmelita. “Tanta vida a se acabar” na Bacurau nordestina. Os artistas não se calam.

    A produção cinematográfica é um empreendimento que ocorre dentro da lógica capitalista. Do cinema “independente” ao industrial, é resultado do trabalho humano. Para os interesses empresariais, é um processo produtivo com potencialidades lucrativas. De olho na bilheteria, os produtores distribuem um produto específico e objetivam a lotação das salas exibidoras. Questões econômicas no campo das artes, geram conflitos entre os seus protagonistas. Conceitos diversos de como fazer cinema e suas relações mercadológicas provocam tensões entre correntes cinematográficas. A liberdade de criação, a captação de recursos financeiros, a disponibilidade de espaços exibidores e outras demandas, mostram a complexa dinâmica conduzida pelos criadores culturais. Na exibição dos créditos finais do filme BACURAU, os seus realizadores explicitam a visão que têm do bem cultural. De maneira implícita, a mensagem defende a ideia de que vale a pena investir em produções fílmicas. Estas podem dar retorno para a economia: “A realização e distribuição desse filme gerou mais de 800 empregos diretos e indiretos, além de ser a identidade de um país, a cultura é também indústria”. Na sequência desta racionalidade quantitativa, BACURAU vendeu um qualitativo rebento artístico.

     



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