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PPGS013 - TEORIA SOCIOLÓGICA I - Turma: 01 (2020.1)

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  • MAX WEBER ASSISTE O HAMLET DE LAURENCE OLIVIER
  • 19/09/2020 22:51
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                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                     Rei Lear, Macbeth e Hamlet. Trilogia de tragédias teatrais shakesperianas que foram transpostas para o cinema. Dramas clássicos da literatura para dialogarem com a intelectualidade das ciências humanas e sociais. Os bastidores da política são narrados por um escritor profundo no seu conhecimento sobre a humanidade. Obras literárias que chegam aos dias de hoje com as suas potencialidades desvendadoras das motivações que impulsionam as ações humanas. Na trilha do Caim matou Abel, os seres humanos rompem com os padrões éticos e morais para a consecução dos seus interesses. Chegar a ocupar o trono, símbolo de poder, é um objetivo que leva os seus concorrentes a usarem dos mais variados meios, incluindo os sanguinários. Nobreza e vilania nos corredores palacianos. Alteza e golpes baixos. Crimes ao som de sinfonias. "Facínora sanguinário e corrupto! Facínora desnaturado, traiçoeiro, covarde e sem remorsos! Ó, vingança!" É a fala de um Hamlet abalado pela morte de seu pai, após descobrir que ele foi envenenado e morto pelo seu próprio irmão. Pouco tempo depois, o assassino casa com a viúva. Estamos em um reino dinamarquês datado, a servir de modelo para pensarmos sobre as práticas políticas das duas primeiras décadas do século XXI. Ecos do "ser ou não ser", a atemporal questão hamletiana.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   "Algo está podre no reino da Dinamarca". No atual desgoverno brasileiro também. Constatação feita a partir do contexto vivido pelo Hamlet shakesperiano. Podridão com potencial para ser transposta em uma série de reinados nos dias atuais. Podres poderes exercidos por governantes comprometidos com os interesses das classes dominantes. O mundo como palco de dramáticas e trágicas situações geradas por governos irresponsáveis e em alguns casos, genocidas. A ciência da história apresenta uma variedade de exemplos de como os homens têm usado e abusado do poder. Para atingirem as suas posições, utilizam dos mais variados meios. Legais ou não, o trono está vazio e a coroa espera a próxima cabeça que governará. Hamlet vê um fratricida ocupar o lugar do seu pai morto. Um tio assassino é o novo rei. A quem estamos entregues? No leito, a sua mãe divide a cama com o homem que matou o seu marido. O espetáculo recebe o desejo de vingança filial. Maquiavel, Caetano Veloso, Max Weber, Michel Foucault, entre outros, lançam os seus olhares sobre como os poderosos exercitam os seus mandatos, após terem sido empossados. Coroados, seguem nos planos de reeleição e, em certos casos, vale tudo para seguir ocupando a majestosa posição. Com sons e fúrias, o processo histórico segue com as suas humanas disputas. Os protagonistas dos conflitos são sujeitos demasiadamente humanos e ambivalentes nas suas atitudes nobres e apodrecidas. Na cena final, depois de tanto barulho, restará a cabeça de uma caveira, tal como o crânio de Yorick, depois do corpo do seu proprietário ter servido de iguaria para os vermes. Um banho de sangue, com quatro mortes, ocupará parte do tempo de um jornal televisivo barra pesada.

                                                                                                                                                                                                 William Shakespeare (1564-1616) é um dramaturgo a ter uma participação especial nos cursos de ciências humanas e sociais. De François Laplantine, recebi um precioso toque metodológico: Acessar os mais variados temas a partir do texto literário. Da literatura, abri a perspectiva metodológica e fui ao cinema para ampliar os olhares sobre os assuntos alvos das nossas pesquisas. Nas aulas sobre Max Weber, chega o encontro para refletirmos sobre política e é o momento de ler Hamlet, na sua tradução cinematográfica. Entramos no palácio de Elsinore e ao circularmos pelas suas dependências, recebemos lições sobre a sede humana de poder. Intrigas palacianas reveladoras das múltiplas faces humanas. Um serpentário humano no qual o veneno não procede das cobras, mas das feras constituintes da nossa humanidade. Cordeiros mansos e serpentes venenosas são habitantes simbólicos dos nossos seres. O fantasma do pai de Hamlet ilustra a visão dos homens como criaturas geradoras de delicadeza e de mortíferas intenções. Quando o que está em jogo são as disputas políticas por cargos e mandatos, fica mais evidenciada a nossa versatilidade de sermos Neros e Franciscanos. Sem maniqueísmos, matamos e curamos. As falas dos personagens hamletianos traduzem quem somos nós: "Mas sabei, meu nobre rapaz, que a serpente que tirou a vida de vosso pai, agora usa sua coroa". Mentira, traição e as consequentes decepções individuais e coletivas conduzem à construção de imagens negativas sobre os sujeitos dos nossos relacionamentos. As falas seguintes são de um Hamlet decepcionado: "Ser honesto neste mundo é uma qualidade encontrada em um homem dentre milhares". "Se tratarmos todos os homens como merecem, quem escaparia das chibatadas?".

                                                                                                                                                                                                 Os valores e as tradições marcam presença no conceito weberiano de ação social. As nossas ações sociais carregam referências valorativas. Estas, são transmitidas através das gerações. A literatura clássica apresenta exemplos da transmissão de princípios valorativos. Dos mais tradicionais, representados pelos velhos, aos jovens, conselhos são transmitidos. Toques sapienciais dados por quem tem mais experiência de vida. Polônio é pai de Ofélia e Laertes. Conselheiro do reino dinamarquês, é um dos principais personagens de Hamlet. Na despedida do seu filho, com viagem programada, emite palavras de aconselhamento. Lições de um senhor, calejado pelas estradas percorridas, a um jovem com caminhos a trilhar. Sabedoria shakesperiana na fala da sua paternal cria literária: "Eu te dou a minha benção. Guarda os seguintes preceitos em tua memória para enaltecer teu caráter: Sê amigável, mas jamais vulgar. Conserva com arcos de aço em tua alma as amizades que conquistaste e colocaste à prova, mas não esfola tua mão entretendo cada camarada implume e recém-chocado. Evita entrar em uma disputa, mas, caso seja inevitável, certifica-te de que teu oponente conheça tua natureza. Oferece tua atenção a todos, mas dividas tua voz com poucos. Usa vestes tão caras quanto tua bolsa permitir, mas não sejas extravagante. Demonstra riqueza, mas evita a pompa, pois as vestes tendem a revelar o homem. Não tomes emprestado e não emprestes, pois aquele que empresta perde o dinheiro e a amizade e aquele que pede emprestado compromete suas economias. Acima de tudo, sê verdadeiro contigo mesmo e, assim como a noite sempre segue o dia, jamais sê falso com outro homem. Adeus. Que minhas bençãos cultivem esses conselhos em ti". Importa encontrar a sabedoria antes de atingir a velhice. Mensagem evocativa do Bobo da corte do Rei Lear.

                                                                                                                                                                                      Palavras penetram como punhais nos nossos ouvidos. A comprovação literária de tal afirmação é encontrada na dramaturgia teatral shakesperiana. Emoções e sentimentos humanos são vividos nas suas complexidades. Homens matam e rezam. Assim é a nossa humanidade e suas contradições. Inquietos, vivem divididos entre variadas forças impulsionadoras. As motivações são diversas e em certos casos, conflituam entre si. No campo das disputas políticas, os sujeitos conflitantes experimentam as suas ambiguidades. Com o objetivo de chegar ao poder, recorrem a ações criminosas. Ao escrever sobre os conflitos palacianos, Shakespeare constrói personagens oscilantes entre gestos misericordiosos e desejos de vingança. Movimento de ambivalências vivido na interioridade de um rei fratricida. Penitente e ardiloso. Coroado, alcançou o trono depois de ter arquitetado a morte do monarca anterior, no caso, o seu irmão. Crime gerador de desassossego ao seu praticante. Sob o peso do fardo da ação criminosa, em um momento em que está em um encontro consigo mesmo, com consciência pesada, subjetiva a sua inquietude. Envenena e ora a Deus. No seu recolhimento, enuncia o seu aprisionamento aos interesses terrenos. Sua ascensão é limitada pelas forças que puxam ele para o chão da ganância, do ter e sentir-se poderoso. "As minhas palavras subiram para o alto, os meus pensamentos ficaram na terra". Entre estes, eliminar o sobrinho Hamlet. E prossegue: "As palavras separadas dos pensamentos nunca ascendem ao céu".

                                                                                                                                                                                                              Cinema é o espaço da eloquência das imagens em movimento. Quando Shakespeare chega ao écran cinematográfico, o teatro das palavras ganha uma nova tradução. Nas telas ou nos palcos, o essencial é o deleite proporcionado pelo vigor do texto shakesperiano. Densidade literária, filosófica, antropossociológica e política. A humanidade posta em questão. As ações sociais humanas, prenhes de significado, são estudadas pelas lentes de um profundo e sábio escritor. Razão, valores, afetos, sentimentos e emoções são elementos de uma tipologia sobre o agir humano em sociedade. O sociólogo Max Weber, na sua sociologia compreensiva e interpretativa, focaliza os sentidos entranhados nos nossos atos. Pensamento sociológico a ser acessado quando contamos com o "auxílio luxuoso" do Hamlet shakesperiano. No contexto de um palácio real, penetramos nas entranhas do exercício do poder. Os habitantes e frequentadores do fausto palaciano são as mais humanas das criaturas. Poéticas e ardilosas. Operísticas e venenosas. Capazes de tudo para manterem e conquistarem trono e coroa. Da antiguidade clássica, ao nosso tempo dos confessionários portáteis, móveis e eletrônicos, acompanhamos o conflituoso processo histórico. Da Roma antiga dos césares, ao Jair Bolsonaro da sociedade em rede, os tronos continuam sendo banhados em sangue.

    O epílogo de Hamlet é mortal. Vingança concluída com um saldo de quatro mortos. Coveiros, invisíveis no cotidiano, têm voz e falas na tragédia shakesperiana. No cemitério, Hamlet segura a caveira de Yorick, e reflete: "Alexandre morreu e foi enterrado. Alexandre tornou-se pó, o pó em terra. ...O magnânimo César, morto e transformado em argila". O homem é o lobo do homem, mas na cadeia alimentar de Shakespeare, o seu ponto final acaba em uma refeição reinada por seres verminosos. Polônio vivia no serpentário da realeza palaciana e protagonizava suas delícias, dores e ardis. Aconselhava e espreitava. Em uma das suas escutas, escondido, foi confundido e morto. Querendo saber do seu paradeiro, o Rei fratricida pergunta pelo Conselheiro sumido. Hamlet diz que ele está ceando. "Onde?" Na resposta, Shakespeare desvenda a nossa conclusão existencial. O fim universal de todos(as), sem distinção de classe, cor, orientação sexual. A fogueira das vaidades ardia no tempo de Calígula e não perde o seu ardor. Fala Hamlet, cadê Polônio? "Está a cear. ...Não numa ceia onde ele coma, mas numa ceia em que é comido. Há uma certa reunião de vermes políticos que estão a ocupar-se dele. O verme que vos há de devorar é o único imperador da dieta. Engordamos todas as criaturas para que nos engordem, e alimentamos os vermes. Um rei gordo e um mendigo magro são apenas comidas variadas: dois pratos, mas a mesma mesa. É como tudo acaba. Um homem pode pescar com o verme que comeu um rei e comer o peixe que comeu esse verme. ...A não ser mostrar-vos que um rei pode acabar nas tripas de um mendigo". E assim caminha a efêmera humanidade. “Nós que aqui estamos, por vós esperamos”. Recado dado pelos habitantes dos parques da paz cemiteriais.



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